Livre-arbítrio e mal em Santo Agostinho

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O fato de o livre-arbítrio existir, incontestavelmente, é um bem. O grande debate, porém, em torno dessa questão é a forma como o homem o utiliza: ou para o bem, ou para o mal. Agostinho assinala que se alguém usar o livre-arbítrio para pecar cai sobre si o castigo, da parte de Deus. Em toda a sua filosofia, Agostinho defende a superioridade da alma sobre o corpo. A alma foi criada por Deus para orientar o corpo à prática do bem. Não obstante, devido à existência do livre arbítrio, o ser humano que o utiliza mal conduz a submissão da alma ao corpo.

O único caminho do perdão, para o pecador, é através da graça divina que o reconcilia consigo, uma vez que a desigualdade entre Criador e criatura é imensurável e só o Criador pode salvar/reconciliar a criatura. Todavia, nem todas as pessoas são dignas de receber a graça, mas somente aqueles que se colocam no caminho da salvação, isto é, aqueles que buscam a salvação – não como um troféu, mas por amarem o Amor, ou seja, por amarem a Deus.

Agostinho acreditava que, o homem, depois do pecado original, foi amaldiçoado com a morte. Mas Deus, em Jesus Cristo, reconciliou a humanidade consigo. E Deus, de forma a priori, já sabe aqueles que serão salvos da condenação eterna. Desta forma, devemos levar uma vida de maneira a buscar a salvação, não excluindo a possibilidade de não queremos a salvação, de negarmos a Deus. Para Agostinho, o ser humano, por possuir o livre-arbítrio tem a possibilidade de escolher não se reconciliar com Deus.

Só que Deus já tem conhecimento prévio de todas as nossas possibilidades, antes mesmo de nós as vivermos. Logo, tudo é conhecido por Deus, o que não significa que Este nos tolhe o livre-arbítrio. Pelo contrário, deixa-nos a escolha de todas as possibilidades. Nas palavras do bispo de Hipona: “Deus é presciente de todas as coisas futuras e nós de modo nenhum pequemos por instrição. Quem efetivamente dissesse que um fato poderia acontecer de modo diferente do que Deus infalivelmente previra antes, tentaria destruir a presciência divina, com a mais insensata impiedade.” (O Livre Arbítrio, p. 169).

Sem a vontade livre, o homem não poderia agir virtuosamente. Como fazer o bem a outrem se já estamos de maneira a priori direcionados para agir de tal forma? Para Agostinho, se o homem fosse privado do livre-arbítrio da vontade, não poderia existir a bondade. O ato da vontade está em nosso poder. Deus é onisciente, portanto, tem conhecimento de tudo o que foi feito, do que é feito e do que será feito, mas isso não significa que Ele intervém diretamente nas ações particulares do ser humano. Deus deixa que o ser humano aja segundo a sua própria deliberação.

Mesmo conhecendo previamente as nossas volições futuras, disso não se conclui que se queira alguma coisa sem ser por vontade livre. Quando o homem vier a ser venturoso, não o será contra a vontade, mas sim querendo-o livremente e a nossa vontade, estando em nosso poder, é livre. Deus é presciente de todos os acontecimentos futuros e nós queremos aquilo que queremos sem que seja tolhido o nosso consentimento.

Segundo o bispo de Hipona: “Todo o ser racional, dotado desde a origem com o livre arbítrio da vontade, se se mantém na fruição do bem supremo e imutável, sem dúvida que merece louvor; e todo o ser racional que se esforça por lá se manter, também este merece louvor. Pelo contrário, o que não se mantém nessa fruição, e não quer fazer por não se manter, merece censura enquanto aí não se encontra, e enquanto não faz por aí se encontrar.” (O Livre Arbítrio, p. 215).

Já as ações causadas por ignorância, isto é, sem o uso da razão, não são consideradas, propriamente, pecados, todavia devem ser consideradas objetos de correção. Isso vale também para os atos praticados inevitavelmente, quando o homem quer proceder bem e não pode, não consegue, ou ainda é impedido. “Para toda alma que peca são punitivos estes dois fatores, a ignorância e a penosidade. Por efeito da ignorância, a alma é rebaixada pelo erro; por efeito da penosidade, é atormentada pelo sofrimento.” (O Livre Arbítrio, p. 233).

Deus criou o homem bom e dotado de liberdade, contudo, além de mostrar a sua bondade teve que mostrar a sua justiça punindo-o – quando usou, o homem, a sua liberdade para ações más –, e a sua misericórdia salvando-o. Os que pecam deveriam bater na porta da misericórdia de Deus. (O Livre Arbítrio, p. 170). Não há dúvidas que o agir reto desenvolve-se na aproximação de Deus e que é unicamente através do livre-arbítrio que temos a condição de possibilidade para pecarmos ou não pecarmos. É por ele que escolhemos entre ações moralmente boas ou ações moralmente más.

Assim: “Visto que ninguém é superior às leis do Criador, não é permitido à alma deixar de restituir aquilo de que é devedora. Ou, pois, restitui bem daquilo que recebeu, ou restitui perdendo aquilo de que não quis usar bem. Logo, não restitui praticando a justiça, restituirá padecendo o infortúnio, pois num e noutro caso se faz ouvir essa palavra – dívida. Realmente, o que se disse poderia ser expresso desta maneira: se não restituir fazendo o que deve, restituirá padecendo o que deve.” (O Livre Arbítrio, p. 224).

 A vontade livre – dada por Deus – é um bem (O Livre Arbítrio, p. 163), pois ela é condição de moralidade. Se o agir humano não fosse livre, ninguém poderia puni-lo ou aprová-lo. Somente onde há liberdade é que se pode falar de bem ou de mal. Para Agostinho, o pecado ocorre quando nosso espírito abandona os bens superiores e dirige-se aos inferiores (O Livre Arbítrio, p. 167) de forma desordenada. Nenhuma outra realidade, a não ser o livre-arbítrio, torna a mente escrava da iniância. (O Livre Arbítrio, p. 53).

A reflexão a respeito do mal sempre ocupou Agostinho e ele parte de uma certeza: a causa do mal não é Deus, pois “de Deus procedem todas as coisas existentes, e que, apesar disso, Deus não é autor do mal”. (O Livre Arbítrio, p. 24). Deus não é o autor do mal porque é o Sumo Bem, isto é, é o Bem por excelência e do Bem só pode provir o bem e a bondade. Nessa perspectiva, tudo que é criado por Àquele que é Bom deve ser criado bom.

Disso deduz-se que a causa do mal não provém de Deus, mas da própria criatura, que foi criada essencialmente boa, mas perverteu-se querendo o que a afastou de seu Criador. O mal permanece sempre sendo um mistério e, deste modo, é forçoso que nunca cheguemos, propriamente, a uma definição precisa, ou a uma plena “desvelação” de tal mistério.

Afinal, o que significa proceder mal? Será que são aqueles atos, pura e simplesmente, que a lei proíbe? Então, se isso fosse verdadeiro, diz Agostinho, os Apóstolos e os mártires foram condenados – por uma lei posta, positivada – por praticaram atos moralmente maus? Quando, sabemos que, foram condenados por serem seguidores de Jesus Cristo.

Assim, pois, “se tudo o que é condenado é mau, seria mau, no tempo de Jesus Cristo, crer e professar a própria fé” em Cristo. (O Livre Arbítrio, p. 28). Todavia, todos os atos maus não são maus por outra razão, que não seja a de serem praticados por paixão, isto é, por condenável iniância. “A iniância ou lascívia consiste no amor das coisas que cada um pode perder contra a vontade.” (O Livre Arbítrio, p. 32).

Exemplificando: “Não será então justa a lei que dá autorização ao viandante de matar o ladrão, para não ser matado por ele; ou a qualquer homem ou mulher, antes de sofrer estupro, de infringir a morte, se puder, ao estuprador que violentamente se lança para eles? Ora, ao soldado até por lei está mandado que mate o inimigo, e se se abstém dessa morte, recebe o castigo de quem comanda. Ousaremos, porventura, dizer que tais leis são injustas, ou antes, nulas?” (O Livre Arbítrio, p. 33).

Para Agostinho, se a lei não for justa, ela não é moralmente aceitável. As leis que se promulgam para governar a sociedade civil permitem e deixam impunes muitos atos que, todavia, serão julgados, posteriormente, pela Providência divina. Dessa maneira, fica claro que o objetivo último de nosso querer deve ser o próprio Deus. O mestre do Ocidente destaca que há dois tipos de lei: a temporânea e a eterna.

A temporânea é a lei que, embora justa, pode legitimamente ser mudada ao longo do tempo. “Sobre a lei temporânea, só é justo e legítimo o que os homens para si tenham feito derivar da lei eterna”. (O Livre Arbítrio, p. 40). Já a lei eterna, à qual se deve sempre obedecer, é a razão pela qual os bons merecem a vida venturosa – beata vita – e os maus, a infortunada. A causa do mal é a criatura. Portanto, a lei temporânea, ou, como contemporaneamente chamamos de positiva, possui uma participação na lei eterna para que seja justa.

Não podemos nos deixar manipular pelos bens inferiores, mas visar, apenas, os que nos levam a Deus. Assim, “o ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotadas dum certo atrativo. A vida neste mundo seduz por causa duma certa medida de beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as formosuras da vida terrena. Por isso, comete-se o pecado, porque pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e à vossa lei”. (Confissões, p. 49).

O santo de Hipona não chegou a negar, propriamente, este mundo, uma vez que os bens deste mundo continuam sendo bens, todavia bens inferiores se comparados aos bens celestes. Há, entretanto, no ser humano, uma tendência em escolher os bens inferiores. Contudo, o ser humano deve esforçar-se, usando de sua inteligência e de sua vontade, para buscar bens superiores, isto é, para buscar a Deus, o Sumo Bem.

Agostinho é claro ao afirmar que através da instrução (que é um bem), as coisas más jamais podem ser aprendidas como boas. Praticar um mal é afastar-se da instrução. “Todo aquele que aprende usa da inteligência, e todo aquele que usa da inteligência procede bem.” (O Livre Arbítrio, p. 23). Pelo fato de Deus ter criado somente o bem, o mal é a ausência de Deus e ele surge com a desobediência do ser humano. A boa vontade é a obediência a Deus, e a má vontade é a ausência de Deus.

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1973.

______. O Livre Arbítrio. Braga: Editorial Franciscana Montariol, 1990.

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A fábula dos três operários

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