O perfil do verdadeiro príncipe segundo Maquiavel

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Maquiavel traça o retrato de corpo inteiro, de frente e em plena luz, do seu príncipe novo. Ele mostra o perfil de Cesare Borgia (príncipe novo), modelo de virtuosidade política, em oposição a Luís XII (príncipe hereditário), que acumulou faltas. Ele apresenta as coisas pelas quais os homens, principalmente os príncipes, são louvados ou criticados.

Como deve o príncipe proceder em relação a seus súditos e seus amigos? Parece mais conveniente, afirma Maquiavel, “ir diretamente à efetiva verdade do que comprazer-se em imaginá-la”. (s/d, p. 101). Muita gente imaginou repúblicas e principados que jamais foram vistos ou de cuja real existência jamais se teve notícia; e é tão diferente o como se vive do como se deveria viver, que aquele que desatende ao que se faz e se atém ao que se deveria fazer aprende antes a maneira de arruinar-se do que de preservar-se. Exemplos disso são Platão, com A República, Thomas Morus, com A Utopia, Francis Bacon, com a Nova Atlântida e Tommaso Campanela, com a Cidade do Sol.

Assim, o homem que queria em tudo agir como bom acabará arruinando-se em meio a tantos que não são bons. É necessário a um príncipe, “para manter-se, aprender a não ser bom e usar ou não usar o aprendido, de acordo com a necessidade”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 101).

Sem dúvida que seria desejável a um príncipe que ele reunisse todas as boas qualidades, que fosse generoso, benfazejo, compassivo, fiel à sua palavra, firme, corajoso, indulgente, casto, franco, grave e religioso. Isso, porém, é praticamente impossível, “a condição humana não comporta”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 102). Há certas qualidades que parecem virtudes e causariam a ruína do príncipe; há outras que parecem vícios, mas que podem ser a causa de sua conservação e de seu bem-estar.

Maquiavel, ao examinar a figura do príncipe, revela seu pensamento com absoluta franqueza. É o pensamento de um homem que, tendo tratado com os outros homens, está desiludido; que sabe, aliás, distinguir perfeitamente o bem do mal e que até preferiria o bem, mas que recusa fechar os olhos ante o que julga ser a necessidade do Estado, ante o que julga serem as sujeições da condição humana.

Seria bom um príncipe ser considerado liberal e generoso; todavia, ser poupador é um dos vícios que fazem reinar. As liberalidades acabam por conquistar-lhe muito poucos indivíduos e por erguer contra ele imenso número de inimigos, por torná-lo odioso aos súditos: “[…] finalmente, empobrecido, perde a consideração que lhe dedicam”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 103). Igualmente, “todo príncipe deve desejar que o considerem clemente e não cruel”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 104).

Verifica-se, agora, uma questão clássica: é preferível a crueldade ou a piedade? É melhor ser amado ou temido? Observando o que já foi exposto, Maquiavel nos diria que todo o príncipe deve desejar ser tido como piedoso, e não como cruel; não obstante, deve cuidar de não usar mal a piedade.

Cesare Borgia era tido como cruel, entretanto, essa crueldade havia posto ordem na Romanha, promovido a sua união e a sua pacificação e inspirando confiança. Isso mostra ter sido ele muito mais piedoso que os florentinos, os quais, para se esquivarem da reputação de cruéis, deixaram que Pistóia fosse destruída. Florença ocupou Pistóia depois de uma série de motins na cidade, ocorridos em 1501 e 1502, provocados pelas lutas entre as facções dos Panciatichi e dos Cancelliere, que o governo florentino fomentava.

O melhor, assim, consistiria em ser amado e temido, mas é difícil. Então, é mais seguro ser temido. Por quê? Há várias razões para isso. Os homens são geralmente ingratos, inconstantes, dissimulados, trêmulos em face dos perigos e ávidos de lucro. Enquanto lhes fazem bem, são dedicados e oferecem-vos o sangue, os bens, a vida, os filhos, enquanto o perigo só se apresenta remotamente. Mas, quando esse se aproxima, bem depressa se desviam. O príncipe que confiasse exclusivamente em todas estas amizades pagas com liberalidades, em breve estaria perdido. Além disso, os homens receiam muito menos ofender aqueles que o amam do que aqueles que o temem.

O vínculo do amor é rompido ao sabor do próprio interesse, enquanto o temor se conserva por um medo do castigo, que jamais os abandona. Não depende do príncipe ser amado, pois os homens amam ao seu bel-prazer, mas dele depende ser temido, pois os homens temem conforme quer o príncipe. Ora, um sábio príncipe deve basear-se não do que depende de outrem, mas do que depende de si mesmo. Ser temido, aliás, em nada significa ser odiado; o ódio dos súditos – como o seu desprezo – é grave; nele não se deve incorrer, porque todas as fortalezas que o príncipe odiado possuir contra os súditos não o salvará de suas conjurações. Há uma singela receita para evitar esse ódio: “é abster-se de ofender, seja contra os bens dos súditos, seja contra a honra de suas mulheres”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 110).

Mas, afinal, de que modo devem os príncipes manter a palavra dada? “Todos compreendem como é louvável num príncipe manter a fé e viver com integridade, não com astúcia. Entretanto, os fatos de nossos dias mostram que há príncipes que realizaram grandes coisas sem que tivessem em demasiada conta a fé da palavra empenhada e souberam, pela astúcia, mudar a opinião dos homens; e que, por fim, superaram aqueles que fundaram seus atos na lealdade.” (MAQUIAVEL, s/d, p. 111).

Existem duas maneiras para governar: pelas leis e pela força. A primeira é natural do homem, a segunda dos animais. Ao príncipe se faz preciso saber investir-se de animal e de homem; um desacompanhado do outra é origem de instabilidade. Neste ponto, Maquiavel experimentou a necessidade, rara nele, de envolver seu pensamento nu e cru, de vesti-lo à antiga, num mito sedutor à imaginação. Escolheu o mito de Aquiles e do centauro Chiron.

Assim, diz que é necessário a um príncipe agir tanto como animal quanto como homem. É próprio do homem combater pelas leis, regularmente, com lealdade e fidelidade. É próprio do animal combater pela força e pela astúcia. Não basta a maneira puramente humana; muitas vezes o homem se vê obrigado a usar a maneira animal. O princípio perfeito, armado para a luta, cujo tipo é Aquiles, deve possuir de certo modo ambas as naturezas, de homem e de animal, as quais se amparam reciprocamente.

Sendo, pois, preciso a um príncipe saber bem usar a natureza dos animais, “deve aproveitar-se das qualidades da raposa e do leão para amedrontar os lobos. Os que adotam apenas a natureza do leão não tem êxito”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 111). Não pode um príncipe prudente guardar a palavra dada quando isso lhe é prejudicial e quando os motivos que o determinaram deixaram de existir. Não obstante, “um príncipe não pode seguir a todas as coisas tidas como boas, sendo, muitas vezes, obrigado a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 112).

É pertinente destacar uma das máximas maquiavelianas: “os fins justificam os meios”. Maquiavel nunca chegou a escrever esta frase, porém deixou explícita na seguinte afirmação: “nas ações de todos os homens, especialmente os príncipes, contra as quais não há tribunal a que recorrer, os fins é que contam. Faça, pois, o príncipe tudo para alcançar e manter o poder; os meios de que se valer serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e para os resultados”. (s/d, p. 113).

Uma tarefa essencial ao príncipe é saber como evitar ser desprezado e odiado. O príncipe procura evitar as coisa que o façam odioso ou desprezível e sempre que agir assim terá cumprido o que lhe cabe e não correrá perigo algum em relação aos outros defeitos. “O que o torna sobretudo odioso é o ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos. Torna-o desprezível o fato de ser tido como volúvel, leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto.” (MAQUIAVEL, s/d, p. 115). Tais coisas devem ser evitadas do mesmo modo que o navegante evita um rochedo. Deve ele fazer que em suas ações se reconheça a grandeza, coragem, gravidade e fortaleza e quanto às ações particulares de seus súditos deve fazer que sua presença seja irrevogável, portando-se de tal modo que ninguém pense enganá-lo ou fazê-lo mudar de ideia.

Segundo Maquiavel, “um príncipe deve ter dois receios: um, em relação ao perigo interno aos seus súditos; outro, em relação ao perigo externo das potências estrangeiras”. (s/d, p. 115). O príncipe deve defender-se com boas armas e bons aliados. Sempre que tiver boas armas terá bons amigos. O príncipe não deve se importar com as conspirações se ele é querido pelo povo, mas se esse é seu inimigo e o odeia, ele deve temer a tudo e a todos.

Deve-se estimar os poderosos, porém, não se tornar odiado pelo povo. O ódio, muitas vezes, se adquire com más ações. Por isso, um príncipe, desejando conservar o Estado, “é frequentemente obrigado a não ser bom” (MAQUIAVEL, s/d, p. 118). Quando a maioria (povo, senado ou grandes) é corrupta, é conveniente que satisfaça os seus desejos e, assim, as boas ações serão prejudiciais.

É de se notar, neste ponto, que assassinos deliberados por homens obstinados são impossíveis de serem evitados pelos príncipes, porque todo aquele que não tiver medo da morte praticará assassinatos. O príncipe não deve, entretanto, amedrontar-se, pois são raríssimos tais homens. Deve somente evitar não injuriar gravemente algumas das pessoas de que se utiliza e que as tenha a seu lado, a serviço de seu governo, como fez Antonino. Antonino tinha assassinado, de modo indigno, um irmão de um centurião e ameaçado a este ainda diariamente; mas, obstante isso, manteve-o na sua guarda, o que era coisa temerária e capaz de arruiná-lo, como sucedeu.

Contudo, quem observar o que foi narrado, por Maquiavel, entenderá que o ódio e o desprezo foram motivos de ruína de muitos imperadores e conhecerá ainda os motivos pelos quais alguns deles, agindo de uma forma e outros de modo contrário, alguns terminaram bem e outros tiveram triste fim.

As fortalezas e muitas outras coisas que os príncipes fazem frequentemente são úteis ou inúteis? Maquiavel responde o seguinte: “[…] alguns príncipes, a fim de manterem com segurança o Estado, desarmavam os súditos; alguns outros mantiveram divididas as terras submetidas; outros nutriram inimizades contra si próprios; alguns outros se dedicaram a ganhar a amizade dos que lhe eram suspeitos no começo do seu governo; alguns construíram fortalezas; alguns as demoliram e destruíram”. (s/d, p. 125).

Ora, jamais aconteceu que um príncipe novo desarmasse os seus súditos; ao contrário, sempre que os encontrou desarmados, armou-os. Porém, a melhor fortaleza do príncipe, afirma Maquiavel, é não ser odiado pelo povo, porque embora tenha fortalezas, se o povo lhe vota ódio elas não o salvam; “eis que não faltam nunca ao povo, que se haja rebelado, armas estrangeiras que o socorram”. (s/d, p. 129).

 E como deve conduzir-se um príncipe para ser considerado? Não há coisa que faça mais considerado um príncipe do que a realização de empreendimentos e o dar de si exemplos extraordinários. Ao novo príncipe, nada mais resta, senão observar certas regras, tanto na política exterior, quanto na escolha de seus conselheiros e ministros. Jamais deverá tornar poderoso outro príncipe, pois seria trabalho para uma ruína. Mostra-se francamente amigo ou inimigo, isto é, sabe declarar-se abertamente pró ou contra tal ou qual Estado: o partido da neutralidade, que os príncipes irresolutos quase sempre abraçam, atemorizados pelos perigos presentes, quase sempre os conduzem também à ruína.

Um bom ministro, afirma o filósofo florentino, é aquele que nunca pensa em si, mas sempre no príncipe, e que só lhe fala do que diz respeito ao interesse do Estado. Mas é preciso também que, por sua vez, “o príncipe pense no ministro, cumule-o de riquezas, de considerações, de honras e dignidades” (s/d, p. 136), para que receie toda mudança como o fogo e saiba perfeitamente que é tudo com o amparo do príncipe, nada sem ele. Por outro lado, a forma de como evitar os aduladores é um assunto pertinente a ser tratado pelos príncipes, pois as cortes estão repletas de aduladores. Uma maneira eficaz de defender-se contra adulações é “[…] fazer com que os homens entendam que não ofendem dizendo a verdade”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 137).

Porém, o príncipe prudente deve escolher homens sábios para seus auxiliares, “e apenas a estes deve conceder liberdade de dizer-lhe a verdade e somente a respeito daquilo que ele lhes perguntar, não de outras coisas”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 137). Um príncipe deve aconselhar-se sempre; deve, contudo, perguntar muito e ouvir pacientemente as coisas que, em resposta, forem ditas com franqueza. Enfim, “os bons conselhos, venham eles de onde vierem, devem nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe nascer dos bons conselhos”. (MAQUIAVEL, s/d, p. 139).

Referência Bibliográfica

MAQUIAVEL. O Príncipe. São Paulo: Cultrix, s/d.

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