O direito, segundo Kant, caracteriza-se por ser uma relação de arbítrios e por referir-se apenas à forma e não à matéria do arbítrio. A faculdade de desejar, que se refere à matéria, é considerada inferior e a faculdade que lida com as leis puramente formais é considerada superior.
A relação jurídica não é uma relação entre arbítrios e desejos ou entre dois desejos, mas entre dois arbítrios. Portanto, a relação jurídica não se refere a desejos. Desejo é a mera expressão da vontade e indica uma finalidade que o sujeito quer alcançar; é o apetite (inclinação, tendência), a determinação espontânea da força própria de um sujeito, que acontece por meio da representação de uma coisa futura considerada como efeito da forma mesma; é apetite habitual de natureza sensível (Anthr., § 73). Já o arbítrio é a consciência da capacidade de atingir e realizar o desejo ou o fim proposto. O direito somente é possível quando há dois arbítrios, ou seja, quando há duas capacidades autônomas que tem a possibilidade de deliberar e alcançar os seus desejos, a partir de uma relação recíproca.
Por exemplo, para a possibilidade de um contrato de compra e venda “não é suficiente que o arbítrio do comprador se encontre com o desejo do vendedor, mas é preciso que também por parte do vendedor o desejo se resolva em arbítrio”. (BOBBIO, 1991, p. 69). Somente se há dois arbítrios é possível classificar a relação como jurídica. Outro exemplo é em relação a um mendigo. Pode-se dizer que ele tem desejo de receber esmola, mas jamais arbítrio para tal. E sobre o mero desejo não é possível existir uma relação jurídica.
Desta forma, para que haja uma relação jurídica é necessário reciprocidade (de arbítrio); assim, na relação jurídica, não é levado em consideração a matéria do arbítrio, isto é, o fim que cada sujeito se propõe com o objeto que quer alcançar, mas somente é levada em consideração a forma. Não se pergunta se alguém leva vantagens ou não com a mercadoria que está comprando, mas pergunta-se apenas sobre a forma da relação do arbítrio recíproco; conforme já foi visto, em um contrato de compra e venda, não importam as relações subjetivas dos contratantes, mas importam apenas as condições externas, isto é, as condições formais que legitimam um contrato. As vantagens ou desvantagens em um contrato de compra e venda não são consideradas pelo direito; somente são relevantes as condições formais do contrato.
O direito não trata da intenção do sujeito agente. Ele refere-se apenas a ações externas e à sua conformidade à lei. Quando há a regulação do direito acerca da instituição do casamento, por exemplo, o direito não se questiona sobre com quem se deve casar ou sobre os fins individuais almejados através desta instituição; ele “limita-se a fixar as modalidades por meio das quais torna-se a atuação das minhas intenções”. (BOBBIO, 1991, p. 69-70).
Portanto, “o direito é a forma universal de coexistência dos arbítrios […]. Enquanto tal é a condição ou o conjunto das condições segundo as quais os homens podem conviver entre si, ou o limite da liberdade de cada um, de maneira de que todas as liberdades externas possam coexistir segundo uma lei universal. […] O direito é o que possibilita a livre coexistência dos homens, a coexistência em nome da liberdade, porque somente onde a liberdade é limitada, a liberdade de um não se transforma numa não-liberdade para os outros, e cada um pode usufruir da liberdade que lhe é concedida pelo direito de todos os outros de usufruir de uma liberdade igual à dele”. (BOBBIO, 1991, p. 71).
Dessa concepção formal acerca do conceito do direito surge o positivismo jurídico, representado por pensadores como Kelsen, Del Vecchio, Stammler e outros. O juspositivismo não trata o direito em um sentido prescritivo, mas apenas descritivo e defende um conceito de validade meramente formal.
Já em relação à faculdade de desejar, Kant distingue duas formas de faculdade: a inferior e a superior. A faculdade de desejar inferior refere-se aos sentimentos, às paixões; a faculdade que lida com regras práticas materiais, a saber, os sentimentos, os desejos (apetite) é uma faculdade inferior, pois pressupõe sempre como seu motivo determinado um objeto empírico. A faculdade de desejar superior refere-se às leis puramente formais. É determinada pela simples representação da lei.
Justificar uma lei é mostrar qual é o princípio que a fundamenta. O princípio último se põe por si mesmo. Esse princípio último não pode ser material; ele só pode ser e é um princípio formal. Não há como explicitar o princípio material como, por exemplo, a felicidade pessoal, a não ser apelando-se para a experiência. O problema da experiência é que ela é particular e contingente e o princípio precisa ser universal.
Conforme Kant, “todas as regras práticas materiais põem o fundamento determinante da vontade na faculdade de apetição inferior e, se não houvesse nenhuma lei meramente formal da vontade, que a determinasse suficientemente, não poderia tampouco ser admitida uma faculdade de apetição superior”. (CRPr, 2011, p. 38).
A vontade é determinada ou pela matéria ou pela forma. Eliminando a matéria, resta apenas a forma. A razão é uma faculdade de desejar superior. A faculdade de desejar inferior está sujeita a faculdade de desejar superior. Kant não afirma que uma lei não tem matéria, pois toda lei tem forma e matéria, mas a matéria não deve determinar a vontade para que a ação tenha valor moral.
Kant não nega a existência das consequências de uma ação, porém não é a expectativa das consequências que determina a vontade para que ela seja universalizável. Os princípios práticos materiais não servem para serem os princípios supremos da moralidade e da legalidade. No momento em que se introduz conteúdo empírico através de mediações sociais ou através de um princípio prático material, o apriorismo cai. Para Kant, o empírico não pode determinar a criação das leis. Se determinasse, haveria um número enorme de possíveis determinações de vontade. Desta forma, Kant busca um modelo único, uma ideia reguladora. As leis práticas têm conteúdo e circunstância, pois é próprio da lei delimitar e definir um conteúdo determinado. Todavia, o princípio que serve de ideia reguladora deve ser a priori.
No teorema III da Crítica da Razão Prática, Kant diz: “a matéria de um princípio prático é o objeto da vontade. Este objeto ou é o fundamento determinante da vontade, ou não o é. Se ele é o fundamento determinante da mesma, então a regra da vontade estaria submetida a uma condição empírica (à relação da representação determinante com o sentimento de prazer e desprazer), consequentemente não seria nenhuma lei prática. Ora, se se separa de uma lei toda a matéria, isto é, todo objeto da vontade (enquanto fundamento determinante), dela não resta senão a simples forma de uma legislação universal. Logo, um ente racional ou não pode absolutamente representar seus princípios prático-subjetivos, isto é, suas máximas, ao mesmo tempo como leis universais, ou tem de admitir que a simples forma dos mesmos, segundo a qual eles convêm à legislação universal, torna-os por si só uma lei prática”. (CRPr, 2011, p. 45).
Separando a matéria da forma, se retira tudo aquilo de empírico que possa motivar a ação. Sobra, assim, apenas a forma da lei, isto é, a sua universalidade. Já para Hegel não tem como separar forma e matéria, pois a concretização do princípio formal é uma exigência de sua determinação. Não é possível eliminar a matéria da lei, pois a mesma é constitutiva do princípio.
A prova disso se encontra nas mediações sociais. A mediação social da vontade livre cria leis a partir de costumes, hábitos e tradições. Não dando uma base material ao princípio, ele fica vazio, permanecendo uma indeterminação. Consequência disso, o critério da não-contradição não se põe. Não existe contradição formal. A contradição somente se põe quando se fere uma determinação ou um princípio que diz o que deve ser feito. A dicotomia forma-conteúdo só é possível pela permanência no vazio formalismo. Esse vazio formalismo afeta a construção do imperativo categórico.
Segundo Rawls, “é importante reconhecer que a lei moral, o imperativo categórico e o procedimento do IC são três coisas distintas. A lei moral é uma ideia da razão. Determina um princípio que se aplica a todos os seres razoáveis e racionais (ou seres razoáveis, para abreviar) sejam ou não, como nós, seres finitos imbuídos de necessidades. Emprega-se para Deus, para os anjos e para os seres razoáveis presentes em outras partes do universo (se existirem), assim como para nós. O imperativo categórico, sendo um imperativo, dirige-se apenas àqueles seres razoáveis que, por serem finitos e imbuídos de necessidades, experimentam a lei moral como uma restrição. Na qualidade de seres assim definidos, experimentamos a lei moral dessa maneira e, assim, o imperativo categórico especifica como essa lei deve aplicar-se a nós […]. Para que o imperativo categórico se aplica à nossa situação, precisa adaptar-se às nossas circunstâncias na ordem da natureza. Essa adaptação é realizada pelo procedimento do IC, na medida em que leva em conta as condições normais da vida humana por meio da formulação da lei da natureza […]”. (2005, p. 192-3).
Conforme Weber, “a não contradição entre uma máxima e a lei universal é o critério de moralidade adotado por Kant na Filosofia prática”. (2009, p. 91). Contradição em Kant ocorre, portanto, quando o agente deseja que o princípio seja válido para todos, porém querendo, ao mesmo tempo, que haja uma exceção em favor a si mesmo. Assim, querer que a máxima continue valendo como lei universal, mas querer que haja uma exceção para si é cair em uma contradição, segundo Kant.
Explicitando o significado de máxima, Höffe destaca o seguinte: “por máxima Kant entende proposições fundamentais subjetivas do agir […], que contêm uma determinação universal da vontade e dependem de diversas regras práticas […]. (1) Como proposições fundamentais subjetivas, elas são diversas de indivíduo a indivíduo. (2) Como determinações da vontade, elas não designam esquemas de ordem, que um observador objetivo atribui ao agente; trata-se de princípios que o ator mesmo reconhece como seus. (3) Como proposições fundamentais de que dependem diversas regras, as máximas contêm a maneira pela qual as pessoas conduzem o todo de sua vida em relação a determinados aspectos fundamentais da vida e da convivência, como, por exemplo, a indigência, o tédio da vida ou as ofensas”. (2005, p. 203).
Leis procedem da vontade; não se pode classificar a vontade como livre ou não livre, pois a vontade refere-se apenas à produção de leis e não à ações. Já as máximas procedem de escolhas, do arbítrio. A partir dos diversos princípios subjetivos (máximas), Kant distingue as máximas morais das máximas não-morais e, a partir do critério da universalização, indica que se deve seguir apenas as máximas morais. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant trata de quatro exemplos a fim de apresentar o procedimento da universalização. Ei-los:
I) um homem, por passar por uma série de males, se encontra em desespero. Estando de posse de sua razão, ele questiona-se se tirar a própria vida seria uma violação do dever para consigo mesmo. Será que, em casos extremos, a dor pode justificar o suicídio?
II) é ético em uma situação totalmente excepcional (por exemplo, graves necessidades financeiras) não cumprir a palavra dada? O ato de mentir e de fazer falsas promessas constituem ações imorais, pois suas máximas não podem ser queridas como leis universais. A pureza da intenção, no cumprimento do dever, é a condição de uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo aquilo que a inclinação louva. O valor moral de uma ação consiste no respeito à lei prática pelo puro dever de cumpri-la, sem ser movido por inclinação alguma. Assim, o dever contém em si a boa vontade;
III) um homem talentoso prefere ficar no ócio, entregando-se ao prazer e não esforçar-se a fim de ampliar o seu talento. É justificável não desenvolver os próprios talentos para se dedicar apenas ao ócio? O imperativo categórico impõe a todos os indivíduos não pecar por omissão, ou seja, deve-se sim desenvolver da melhor forma possível seus talentos. Sem isso, a civilização acabaria retrocedendo;
IV) um homem, bem sucedido, vendo que outros homens estão em dificuldade prefere não ajudá-los nas suas necessidades. Isso seria justificável? É eticamente lícita uma atitude de indiferença em relação aos outros? A generalização do comportamento egoísta pode tornar-se prejuízo para o próprio egoísta. Portanto, esse comportamento não pode ser universalizado.
O primeiro e o segundo exemplo (“suicídio” e “falsa promessa”, respectivamente) mostram que se eles se convertessem em leis universais, cairiam em contradição consigo mesmo. Fazer uma falsa promessa é em si mesmo contraditório, pois assim as promessas desapareceriam. Esses dois exemplos tratam de “deveres perfeitos ou estritos”. Esses deveres, em hipótese alguma (nem no pensar e nem no querer), admitem exceções.
Sobre o terceiro e o quarto exemplo (“não desenvolver os próprios talentos” e “ser indiferente em relação aos outros”, respectivamente), “não se pode querer que a máxima se transforme em lei universal da natureza, embora seja possível a subsistência de uma lei universal de acordo com tais máximas. É possível que possa subsistir uma lei, segundo a qual os que vivem na riqueza não ajudem os mais necessitados, mas não se pode querer que seja assim. Não se pode querer que as pessoas não desenvolvam seus talentos naturais, embora possa subsistir uma lei segundo a qual ninguém desenvolva seus talentos”. (WEBER, 2009, p. 93).
O terceiro e o quarto exemplo tratam de “deveres imperfeitos ou amplos”. Esses deveres podem ser pensados, diferentemente dos deveres perfeitos (que não podem ser pensados), mas não devem ser almejados (querer). Kant aborda também o exemplo do depósito.
“Sem instrução o entendimento comum pode distinguir qual forma na máxima presta-se, e qual não, a uma legislação universal. Por exemplo, adotei como máxima aumentar minha fortuna através de todos os meios seguros. Agora se encontra em minhas mãos um depósito, cujo proprietário faleceu e não deixou nenhuma manifestação escrita a respeito. Naturalmente este é o caso de minha máxima. Quero saber agora somente se aquela máxima pode valer também como lei prática universal. Aplico-a, pois, ao caso presente e pergunto se ela poderia admitir a forma de uma lei, por conseguinte, se eu mediante minha máxima poderia fornecer ao mesmo tempo uma tal lei: que seja permitido a qualquer um negar um depósito, cujo assentamento ninguém pode provar-lhe. Dou-me conta imediatamente de que um tal princípio enquanto lei destruir-se-ia a si mesmo, porque faria com que não existisse absolutamente depósito algum. Uma lei prática, que eu reconheça como tal, tem que qualificar-se a uma legislação universal; esta é uma proposição idêntica e, pois, por si clara. Ora, se digo: minha vontade está sob uma lei prática, então não posso apresentar minha inclinação (por exemplo, no presente caso, minha cobiça) como o fundamento determinante de minha vontade apto a uma lei prática universal; pois essa inclinação, completamente equivocada no sentido de que devesse prestar-se a uma legislação universal, tem que, muito antes, sob a forma de uma legislação universal, destruir-se a si mesma.” (CRPr, 2011, p. 45-6).
A máxima de negar o depósito se destrói a si mesma fazendo, assim, que não houvesse mais depósitos. Deve-se ter um princípio a partir do qual se pode justificar ou não justificar as leis. A razão é a faculdade de justificação das regras mediante princípios. Não se satisfaz apenas seguindo regras, mas quer uma justificação das regras. A forma da lei se impõe por si mesma devido a sua universalidade e não pelas possíveis exceções ou conteúdos materiais.
Kant não aceita a felicidade como princípio prático material, defendida por Aristóteles e outros. O princípio não poderia enunciar conteúdos materiais. Tudo isso, segundo Hegel, é insuficiente. O objetivo central em Kant é a busca do princípio (critério) supremo de moralidade e da justiça. O procedimento jamais será injusto; já as regras podem sim serem injustas. Não se justifica o valor moral de uma ação através de um conteúdo material.
Hegel, discordando de Kant, afirma que se nada for determinado não pode haver contradição, ou seja, na indeterminação não há contradição, mesmo nos exemplos dos deveres perfeitos, como o fim do depósito ou da falsa promessa, pois pode existir uma sociedade em que não haja propriedade privada e, portanto, depósito. Contradição em Kant é querer que um princípio seja universal (válido para todos), mas querer ao mesmo tempo abrir uma exceção a seu favor. Para Hegel, somente é possível falar em contradição se há conteúdo moral, ou seja, se há determinação de um conteúdo. A contradição em Kant trata apenas da forma; em Hegel, trata da forma e do conteúdo. Sem o princípio que diz que “devemos respeitar a propriedade privada”, por exemplo, não é possível, segundo Hegel, afirmar que “negar o depósito” constitui uma contradição. Além da forma, esse princípio trata também de um conteúdo determinado e, portanto, pode-se defender que o desrespeito de um conteúdo constituído significa cair em contradição.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. Brasília: Edunb, 1991.
HÖFFE, O. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KANT, I. A metafísica dos costumes. Trad. De Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2008.
______. Antropologia. Em sentido pragmático. Madrid: Alianza Editorial, 1991.
______. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2009.
RAWLS, J. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005. WEBER, Thadeu. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.