Rostos, experiências e livros

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Muitas experiências nos tornam pessoas melhores. Muitos livros de filosofia nos tornam pessoas melhores.

Será que podemos olhar para alguém e dizer que o conhecemos? Possivelmente você já escutou de alguém que ao tomar contato com outra pessoa pela primeira vez já sabe dizer se ela presta ou não. E você já deve ter escutado muito a frase: “a primeira impressão é a que fica”. Claro que isso tudo somente é verdadeiro se negarmos ao outro a possibilidade de mostrar-se. O que deveríamos fazer? Simples: deixar o outro mostrar-se, sem rótulos prévios. Assim, não teríamos como rotulá-lo ou classificá-lo. Porém, isso exige uma apurada sensibilidade e é justamente isso que falta para muitos.

Imagine a seguinte situação: você está na fila de um banco e, involuntariamente, você olha para o rosto de uma pessoa e ela está olhando para o seu. Não me refiro a um olhar que se busque, mas àquela troca de olhares involuntária. Como você normalmente reagiria a essa situação? O comum é mudar de direção rapidamente quando isso ocorre. Por quê? Porque o rosto do outro constrange. Quantas vezes, mesmo estando em meio a uma multidão, nos sentimos sós? Podemos estar caminhando no centro de uma cidade lotada de pessoas, mas, ao mesmo tempo, estar num absoluto anonimato. Ficar junto a outras pessoas não significa que haja relações e isso é o que normalmente ocorre. O outro, se não houver alguma abertura da nossa parte, poderá nada significar.

Levinas, em sua ética da alteridade, diz que o outro se mostra como rosto. O rosto não é algo objetivo, não é a parte corporal, mas uma figura do além do visível. “A verdadeira essência do ser humano se apresenta em seu rosto”. O rosto do outro ocorre como uma revelação do outro em sua fragilidade e, justamente por isso, o outro nos chama a uma resposta responsável. Portanto, é a ética que inaugura a humanidade do ser humano, ou seja, aquilo que nos torna humanos é justamente a capacidade que temos de nos sensibilizarmos frente à fragilidade do outro. E quando isso ocorre, nos sentimos responsáveis por ele.

Na obra Totalidade e infinito, de 1961, ele diz que “a moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira” e essa moral é para o tempo presente. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi capturado e feito prisioneiro pelos alemães. Este fato histórico nos ajuda a entender a sua teoria ética. No cativeiro, veio se juntar aos prisioneiros um cachorro, que chamaram de Bobby. O cachorro era um companheiro daqueles homens insignificantes. Por isso, para Bobby, eles eram seres humanos. Levinas conclui que aquele cachorro era o “último kantiano na Alemanha nazista”. Bobby, por brincar com os prisioneiros, é mais humano que o humano. Claro que não no sentido valorativo, mas no sentido de que aquele cão, contrariamente aos nazistas, nota o outro e, por isso, é capaz de abertura.

Quantos são os rostos anônimos, os rostos invisíveis, os rostos que a sociedade não permite que se mostrem? Quais são os rostos de quem varre as ruas, de quem nos serve nos restaurantes, de quem limpa as nossas casas, de quem nos entrega as encomendas, de quem dorme nas calçadas? Esses são rostos invisíveis para a maioria das pessoas. Por que essa invisibilidade existe? Esta invisibilidade não ocorre porque o outro não tem um rosto, mas porque não há uma acolhida. Mas alteridade também não é achar que sabemos o que é melhor para o outro, porque isso é inacessível.

Levinas diz que é a sensibilidade, anterior a toda a razão, que nos permite perceber o rosto do outro como um apelo ao qual nos cabe responder eticamente. E tal responsabilidade é anterior à própria liberdade, ou seja, antes de escolhermos ser responsáveis pelo outro, o que está em jogo é a nossa condição humana. Somente após uma resposta responsável diante da fragilidade do outro é que a liberdade importará. A sua ética da alteridade não é nem principialista (não decidimos a ética no plano da razão e após a aplicamos aos casos concretos) nem contratualista (não há a exigência de reciprocidade. Portanto, não assumo a responsabilidade pelo outro porque ele fará o mesmo por mim, mas assumo por pura gratuidade).

Uma experiência marcante que eu tive foi quando fui voluntário na Pastoral da Criança, em 2003. Passava os meus sábados visitando famílias vulneráveis, conhecendo as suas realidades e vivenciando as suas necessidades. Lembro que uma das minhas tarefas era pesar as crianças. Após alguns anos, estava cursando o 5° semestre da faculdade de filosofia, e acabei me matriculando numa disciplina sobre a obra Totalidade e infinito, de Levinas. Em muitos momentos da leitura da obra, lembrei da minha experiência na Pastoral. Não porque Levinas fala sobre crianças, mas porque ele diz que nos tornamos humanos quando nos tornamos responsáveis pelo outro. E eu me sentia responsável por aquelas crianças e famílias que eu visitava.

Tanto a experiência na Pastoral quanto a leitura de Levinas me ensinaram a amar o desconhecido, a querer o seu bem, sem esperar algo em troca; entendi que não podemos olhar o outro a partir das nossas expectativas, mas assumir uma responsabilidade desde o outro mesmo; aprendi que se eu julgar o outro a partir dos meus valores, o julgamento perde a legitimidade. Enfim, hoje, sabendo que muitos são os rostos que não são reconhecidos pela sociedade, entendo que precisamos urgentemente superar este modelo social em que muitas pessoas são relegadas à invisibilidade.

Por isso tudo, deixo registrado aqui meu agradecimento aos livros, às experiências e aos rostos que mudaram o meu olhar.

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