Consciência na Fenomenologia do Espírito de Hegel

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A Fenomenologia do Espírito traça o percurso da consciência ao Saber Absoluto. Nesta obra, Hegel investiga as manifestações do espírito e as suas realizações na história. Saindo do estado de ignorância, o indivíduo alcança o saber que, em última análise, é a compreensão científica do espírito. No prefácio da obra, Hegel diz que “o saber só é efetivo – e só pode ser exposto – como ciência ou como sistema”. (HEGEL, 2008, p. 38). Assim, a Fenomenologia demonstra que a verdade é mediação, é resultado de todo o trabalho da história universal.

Analisarei, a seguir, as figuras da consciência, ou seja, a certeza sensível, a percepção e o entendimento.

A CERTEZA SENSÍVEL, que parece captar o ser de forma mais verdadeira, acaba por mostrar-se a mais abstrata e pobre verdade. “Do seu objeto, só sabe mesmo que ele é; e do sujeito, só consta que é um este aqui, certo de um isso aí; e do saber, que é uma relação imediata entre os dois termos.” (HEGEL, 2008, p. 35). Hegel exemplifica o objeto da seguinte forma:

“[…] que é o agora? Respondemos, por exemplo: o agora é a noite. Para tirar a prova da verdade dessa certeza sensível basta uma experiência simples. Anotamos por escrito essa verdade; uma verdade nada perde por ser anotada, nem tampouco a aguardamos. Vejamos de novo, agora, neste meio-dia a verdade anotada, devemos dizer, então, que se tornou vazia.” (2008, p. 87).

Nota-se, nesta passagem, que a consciência aceita como verdadeiro somente o “isto individual”. Mas o que é o “isto”? Na verdade acima, o isto, enquanto agora, é noite. Todavia, ao amanhecer, tal verdade se desfaz, restando apenas o agora. Assim, ao expressar o singular, esse se transforma no universal mais indeterminado. Por visar o singular, acaba rejeitando o universal (agora). A consciência visa o singular, porém fica apenas com o universal.

Assim, a consciência, enganada pelo objeto, procura apreender-se a si mesma. Desta forma, a verdade está no eu. Sei sobre os objetos porque eu tenho um saber sobre eles. Contudo, o problema anterior retorna. Eu vejo uma árvore; o outro, uma casa. “As duas verdades têm a mesma credibilidade, isto é, a imediatez do ver, e a segurança e afirmação de ambas quanto a seu saber; uma, porém desvanece na outra” (2008, p. 89), o que não desaparece é exatamente o eu universal. Posso visar um singular, mas não posso dizê-lo, pois isso seria impossível.

A experiência sensível consta que não pode confiar nem no objeto nem no sujeito. Recorre, então, à experiência sensível como um todo. Deste jeito, exclui de si toda a oposição que ocorria anteriormente. Não se trata de um aí que pode ser uma árvore ou de um agora que pode ser noite. “Eu, porém, sou um puro intuir; eu, quanto a mim, fico nisto: o agora é dia; ou então neste outro: o aqui é árvore. Também não comparo o aqui e o agora um com o outro, mas me atenho firme a uma relação imediata: o agora é dia.” (2008, p. 90). Entretanto, se questionarmos este aqui ou agora da certeza sensível, e ela tentar indicar, por exemplo, o agora, o agora já era; é outro agora. O agora e o ato de indicar possuem diversos momentos. Por exemplo, o agora tem muitos agoras (o agora é um dia, que tem muitas horas e a hora, muitos minutos) e o aí tem muitos aís.

Em suma, a consciência, pensando que o objeto é essencial, busca o singular (individual), mas ao tentar exprimi-lo o transforma num universal pobre. Considerando o sujeito como essencial, acaba por dissolvê-lo em inúmeros eus, possuindo cada um a verdade da sua certeza. Tanto no objeto quanto no sujeito a verdade se transformou num universal indeterminado. Quando a consciência se dirige a um universal sensível, este isto agora é “um ser-já-sido, que a consciência rejeita como nulo para voltar a indicar um novo agora e recomeçar assim o movimento desde o princípio”. (CHIEREGHIN, 1994, p. 71). Assim, a certeza sensível não encontra nem no objeto, nem no sujeito e nem na experiência sensível como um todo a verdade imediata que almeja. A sua verdade, no entanto, está num universal que é atingido pela percepção nas condições da experiência sensível. Para Lima Vaz, a certeza sensível “é o domínio onde se move a consciência ingênua, quase animal”. (1981, p. 14).

A passagem da certeza sensível para a PERCEPÇÃO faz com que esta última tenha como princípio o universal (essencial), tanto para o objeto como para o sujeito. Todavia, isso é um problema, pois a consciência não pode considerar tanto o sujeito como o objeto como essências, pois isso significaria reconhecer a multiplicidade. Por isso, a consciência mantém a cisão sujeito-objeto.

A respeito do objeto, a percepção inicialmente o toma como verdadeiro, porém, vacila entre a sua unidade e as várias propriedades que se manifestam nele. As suas propriedades diversas coexistem e a consciência as liga por um também. Por exemplo, “é branco e também picante, também é cubiforme, também tem peso determinado etc.”. (HEGEL, 2008, p. 97).  O também, assim, é o puro universal; é a coisidade de todas essas propriedades. Porém, isso não basta para estabelecer a relação das várias propriedades entre si na identidade da coisa. Cada propriedade está determinada entre si e acaba excluindo a outra. Assim, Hegel diz que “[…] se neste confronto surge uma desigualdade, não é então uma inverdade do objeto – pois ele é igual a si mesmo -, mas [inverdade] do perceber”. (2008, p. 99).

Voltando-se agora para o sujeito, nota-se que acaba sendo atribuído para a ilusão do conhecimento tais paradoxos, encontrados na percepção da coisa. É preferível, para a consciência, se reconhecer como a geradora da ilusão, mantendo a coisa na pureza da sua verdade incontraditória. A apreensão mostrava a coisa una. Por isso, as diversas propriedades surgem do sujeito. Como diz Hegel, “essa coisa é branca só para nossos olhos, e também tem gosto salgado para nossa língua”. (2008, p. 101). No entanto, as propriedades possuem oposições umas com as outras. Assim, a coisa é um “também”: “[…] é branca, e também cúbica, e também tem sabor de sal etc.”. (2008, p. 101). Observa-se, então, que a unidade é criação da consciência.

Contudo, a contradição, mesmo com todo o esforço da consciência para que ela não surgisse, acaba por aparecer. O ser-uno, se for determinado, o é devido suas propriedades. Mas, essas são inessenciais. Outra contradição: sendo uno, a coisa se relaciona apenas consigo mesma e exclui a relação com o outro. Este excluir também é um relacionar. Enfim, Hegel quer deixar claro que o objeto é contraditório. Não é possível que ele mantenha a multiplicidade das suas propriedades juntamente com a unidade das coisas. Conforme Meneses,

“[…] confrontado os dois, vê que ambas as estruturas – do objeto e do sujeito – sofrem da mesma contradição, por serem para-si e para-Outro, irremediavelmente. Procura escapar da contradição recorrendo aos “enquanto que” puramente verbais, onde vai e vem como joguete de abstrações vazias. No entanto, o próprio jogo dessas abstrações impele a consciência a confrontá-las, e assim suprassumi-las, todas juntas, passando ao Reino do Entendimento, onde impera o Universal Incondicionado.” (1992, p. 39).

 Por fim, a consciência fez de tudo para afastar a contradição no objeto. Mesmo assim, o objeto – que no início se mostra como sendo a verdade – é contraditório (ao se revelar uno e muitos).

A consciência chega ao estágio do ENTENDIMENTO. A contradição do objeto que a consciência tanto buscava superar é agora o objeto do intelecto chamado de universal incondicionado, que é qualquer objeto capaz “de ser para si e de se relacionar com outro” (HEGEL, 2008, p. 109), ou seja, por ser incondicionado, o universal carrega em si a contradição. A consciência ainda não se reconhece neste objeto. A verdade, para ela, é a unidade – pois o universal incondicionado “tem em si o transitar do ser para si para o ser para outro e vice-versa” (CHIEREGHIN, 1994, p. 76) –, assim como foi a imediatez para a certeza sensível e a incontraditoriedade para a percepção.

Primeiramente, o objeto a ser considerado é a força, síntese dinâmica entre a unidade e a multiplicidade, ou seja, trata-se de forças com polaridades opostas. É na noção de força que a consciência pode observar a unidade e o movimento numa ação conjunta. Pois, temos uma força quando algo encerra em si um devir. Segundo Hegel, “sua existência é um movimento tal, de uma relação à outra”. (HEGEL, 2008, p. 114). Ressalta também que “as forças não têm, pois, nenhuma substância própria que as sustente e as conserve”. (2008, p. 101).

O conceito de força se torna efetivo somente em sua exteriorização. Ao fazer isso, a força mostra a contradição que há em si. Contudo, quando a força é efetivamente, ela cessa de ser. Ao se exteriorizar, ela é um ser-para-outro, mas ao permanecer no seu interior é um ser-para-si. Deste modo, surge um problema para o entendimento: como salvar a unidade? Hegel responde isso afirmando que a força é una e a diferença “está só no pensamento”. (2008, p. 111). Por isso, é ao pensamento que resta a tarefa de recompor a unidade. Para isso, ele formula a lei. O intelecto busca, mantendo a unidade, salvar as diferenças. Assim, a força é apenas um fenômeno que, através dele, surge o suprassensível.

Num segundo momento, o objeto estudado é o interior, considerado como o segundo universal. O terreno das leis é denominado por Hegel de suprassensível, ou seja, está além do sensível. Neste mundo, existe muita clareza na linguagem utilizada para formular as leis. É um mundo formal e abstrato. Contudo, revela ser apenas uma duplicação do mundo sensível. O intelecto busca encontrar leis cada vez mais universais para o mundo sensível, porém, agindo assim, ele acaba se afastando da concretez das coisas. Quanto maior o campo que uma lei abarca, mais abstrata e superficial ela se torna.

A verdade do entendimento não são as leis determinadas, que nunca abarcam a totalidade, mas a lei universal, como, por exemplo, “[…] a lei da queda da pedra e a lei do movimento das esferas celestes” (HEGEL, 2008, p. 120) que foram concebidas por uma só lei. Todavia, esta lei não manifesta nenhum conteúdo determinado. Ela é apenas uma abstração do intelecto. Tal lei do intelecto carece de necessidade, pois para chegar à formulação da lei é necessário partir de um fato, “e o fato é um pressuposto não deduzido pela lei; ser pressuposto significa que simplesmente se encontra ou deriva de outro quanto à sua existência; em ambos os casos, a sua existência é contingente e a pretensa necessidade da lei move-se dentro desta ineliminável contingência”. (CHIEREGHIN, 1994, p. 79).

Se a necessidade da lei se sustenta em algo que não tem condições de ser necessária, assim a necessidade é apenas uma palavra vazia. Desta forma, se origina a tautologia…

“[…] que a consciência comum manifesta perante a pretensão das leis quanto à clarificação e explicação dos fenômenos. Aquilo que o intelecto apresenta como a conexão necessária entre diferentes elementos (espaço e tempo na queda dos graves, pólos positivo e negativo na eletricidade) constitui na realidade não a explicação do porquê ou da causa do seu existir, mas unicamente do como do seu produzir-se, e, para quem esperava uma demonstração de causa, esta explicação redunda numa tautologia balofa. Assim, se depois de ter aceite que o relâmpago deriva de duas cargas opostas, negativa e positiva, se perguntar por que motivo tal acontece, a resposta é que aquilo é a manifestação de uma força, a eletricidade, que é constituída por duas cargas opostas, de tal modo que tem de manifestar-se assim.” (CHIEREGHIN, 1994, p. 79).

O intelecto, buscando explicações para as leis, permanece na mera tautologia. Isso é perturbante para ele. As oposições que ele pensava dominar as inserindo em leis suprassensíveis acabam ressurgindo. Assim, ocorre o surgimento de um mundo invertido, ou seja, um mundo oposto ao contemplado. Vimos que o primeiro mundo suprassensível foi o reino das leis (reino calmo, sem mudanças). Este mundo é “apenas a elevação imediata do mundo percebido ao elemento universal”. (HEGEL, 2008, p. 126). Agora, o segundo, é o mundo invertido (tudo fica o oposto do que é). Porém, estes mundos, na verdade, são o mesmo mundo.

Esta conclusão implica o conceito do infinito, pois nele se “tem o Outro em si mesmo”. (2008, p. 128). Somente assim o mundo invertido “é a diferença como interior, ou como diferença em si mesmo, ou como infinitude”. (2008, p. 128). Nas palavras de Hegel, o infinito “deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser-suprassumido”. (2008, p. 129). Ele ressalta também que “a infinidade já era, sem dúvida, a alma de tudo o que houve até aqui; mas foi no interior que primeiro ela brotou livremente”. (2008, p. 130). A infinidade, ou seja, a contradição – diferente das contradições anteriores – define a essência da consciência-de-si.

Nas três figuras da consciência (certeza sensível, percepção e entendimento), o objeto lhes era independente a elas. A identificação dos mundos opostos (do reino calmo das leis e do mundo invertido) faz com que surge o conceito do infinito e este revela a consciência-de-si. A passagem da consciência à consciência-de-si ocorre neste momento, quando a consciência se reconhece no objeto. Observou-se que a consciência (sendo entendimento) tem como objeto o universal incondicionado (contraditório). Por isso, sua verdade é a unidade. Em sua primeira análise, considera seu objeto como força. Essa, ao permanecer em seu interior é ser-em–si e ao se exteriorizar é ser-para-outro. Assim, como fica a unidade? Hegel responde que a diferença está no pensamento e para salvar a unidade o pensamento formula a lei. O território da lei é o suprassensível. Só que estas leis criadas pelo intelecto são meras abstrações do intelecto, chegando a ser consideradas tautologias. Como conseqüência desta tautologia surge o mundo invertido. Apesar da aparente diferença dos dois mundos, eles são o mesmo. Disso, a consciência, que antes não se reconhecia no objeto passa a se reconhecer nele tornando-se consciência-de-si.

Referências Bibliográficas

CHIEREGHIN, Franco. Introdução à leitura de Fenomenologia do Espírito de Hegel. Trad. de Abílio Queirós. Lisboa: Edições 70, 1994.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. 5° ed. Petrópolis: Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2008.

LIMA VAZ, H. C. de. Senhor e Escravo: uma parábola da filosofia ocidental, Síntese, n° 22, 1981.

MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

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