Dialética hegeliana

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O pensamento kantiano é dualista, ou seja, ele distingue o fenômeno e o númeno, o finito e o infinito, o ser e o pensar. Portanto, não é possível conhecer o Absoluto. E mesmo buscando o conhecimento do Absoluto, a razão se perde em paralogismos e antinomias. Já o pensamento hegeliano é monista, ou seja, não há a distinção entre fenômeno e númeno, finito e infinito, ser e pensar. Assim, é possível conhecer o Absoluto. Hegel entende a realidade não como substância, mas como sujeito, espírito. Para ele, o espírito é infinito. E isso vale para todo o real desde as suas partes como em seu todo. Ele busca destacar que a realidade não é uma coisa, uma substância, mas é processo, é movimento. A realidade entendida como espírito tem uma vida própria, tem um movimento dialético. Desta forma, a parte é indispensável ao Absoluto.

É possível uma filosofia pós-kantiana que quer conhecer novamente o Absoluto? Enquanto Kant tem como objetivo demonstrara a impossibilidade da metafísica como ciência e, portanto, conclui que as Ideias metafísicas não têm um uso constitutivo de conhecimento, podendo somente ser usadas de modo regulador, Hegel busca retomar a metafísica, resgatando os seus objetos que foram extintos na filosofia kantiana. O idealismo transcendental sustenta o conhecimento somente de objetos conhecidos espaço-temporalmente. O Absoluto, desta forma, é incognoscível.

Hegel, contrapondo-se a Kant, opera um resgate da metafísica como conhecimento do Absoluto. Para Hegel, o Absoluto é o verdadeiro princípio de toda a filosofia e o papel da filosofia é expô-lo em pensamento. O Absoluto é movimento, constante devir. Segundo Hegel, Kant reduziu a filosofia à reflexão abstrata, que se funda na base de oposições excludentes. Hegel busca levar a filosofia à verdadeira unidade dos opostos e, uma vez que esta unidade deve ser viva, não pode ser estática e abstrata, mas tem de ser dinâmica.

O movimento do espírito é circular, ou seja, ele reflete-se em si mesmo. Isso é visível no seguinte trecho: “a lógica têm, segundo a forma, três lados: a) o lado abstrato ou do entendimento; b) o dialético ou negativamente racional; c) o especulativo ou positivamente racional”. (HEGEL, 1995, p. 159). Portanto, esse movimento divide-se em três momentos: o ser em-si (o lado abstrato ou intelectivo); o ser outro ou fora-de-si (o lado dialético em sentido estrito ou negativamente racional); o ser para-si (o lado especulativo ou positivamente racional).

O primeiro momento é compreendido pela faculdade do intelecto que abstrai conceitos determinados e se detém na determinação dos mesmos. Porém, isso não significa que o intelecto é desnecessário. A filosofia, segundo Hegel, deve começar por ele. Todavia, ela deve superá-lo, pois ele apresenta um conhecimento inadequado permanecendo encerrado no finito. O trabalho do intelecto é distinguir e separar e, por isso, o intelecto apresenta um conhecimento inadequado. O conteúdo nunca é um dado isolado.

 A razão vai além do intelecto. Ele tem um estágio negativo e um outro positivo, que são respectivamente o segundo e o terceiro momento da dialética. O momento negativo remove a rigidez do intelecto. Assim, toda determinação do intelecto se transforma numa determinação contrária.

Conforme Reale e Antiseri, “o conceito de ‘uno’, tão logo é extraído de sua rigidez abstrata, requer o conceito de ‘muitos’, mostrando estreita ligação com ele (não podendo pensar o uno de modo rigoroso e adequado sem a relação que o liga com os muitos), podendo-se dizer o mesmo para os conceitos de ‘semelhante’ e ‘dessemelhante’, ‘igual’ e ‘desigual’, ‘particular’ e ‘universal’, ‘finito’ e ‘infinito’, e assim por diante. Aliás, cada um desses conceitos dialeticamente considerados parece inclusive ‘transformar-se’ no próprio oposto e como que ‘dissolver-se’ nele”. (2005, p. 107).

O momento do negativo na dialética consiste na falta que cada oposto revela quando se defronta com o outro. Essa falta é relevante, pois é por meio dela que ocorre a busca de uma síntese superior. O momento culminante da dialética é a síntese superior, é o momento especulativo, é o momento positivo. Aqui há a resolução dos opostos, ou seja, a união dos opostos. Assim, a lógica de Aristóteles permanece encerrada nos limites do intelecto. Em contrapartida, a proposição especulativa, que é própria da razão, supera a rigidez do intelecto e expressa o movimento dialético. Segundo Cirne-Lima, “dialética é o Jogo de Opostos, sim, mas sempre de Opostos Contrários, jamais de Opostos Contraditórios”. (2006, p. 115).

O lado especulativo, que designa a filosofia especulativa, é a unidade do lado do entendimento e do lado dialético. Portanto, a filosofia especulativa não rejeita o lado do entendimento, mas afirma que ele não dá conta de capturar toda a realidade e jamais conhecerá o Absoluto. Já o momento dialético caracteriza-se por conhecer o infinito e frente às contradições, ele as supera através da passagem das determinações aos seus opostos.

Porém, a grande novidade apresentada por Hegel é o terceiro momento, denominado de especulativo. É ele que apreende a unidade na sua oposição. “O resgate da metafísica só é possível, portanto, mediante uma filosofia especulativa para a qual a aparente dispersão e multiplicidade do mundo finito nos possa levar a uma unidade da diferença unidade essa que é a Razão, ou o Absoluto.” (BORGES, 1998, p. 83).

Desta forma, Hegel deixa claro que a apreensão do Absoluto não pode ser feita por meio do entendimento, como fez o projeto crítico de Kant. Na obra Ciência da Lógica, Hegel expõe novas categorias para explicar a exposição do Absoluto na multiplicidade do mundo. O grande passo não dado por Kant, Hegel deu, que foi identificar a identidade entre pensamento e realidade.

Hegel, tal como Kant, distingue o entendimento da razão. A reflexão, para Hegel, é a reflexão da razão e não do entendimento como observava Kant. Conforme Salgado, “a relação pode ser formal, do entendimento, caso em que a reflexão para na fixidez dos polos; ou dialética, em que os polos se consomem num movimento tal que um pertence ao outro por mudança recíproca.” (SALGADO, 1996, p. 128).

A ciência é, para Kant, obra do entendimento analítico. Essa visão é redutora. Em Hegel, o entendimento é integrado na dinâmica da razão e esta, como razão concreta e dialética, é a forma mais adequada de pensar o real. A raiz das contradições da filosofia kantiana está no fato de que o pensamento é movido pelo entendimento. Ele separa, divide, limita, isola, cria oposições, fomenta dualismos; já a razão, une. O entendimento opera na finitude mediante distinções e abstrações; a razão busca restabelecer as relações que unem os diferentes momentos do conhecimento.

O entendimento é capaz de pensar somente objetos finitos e condicionados, ou seja, fenômenos e é nele que a metafísica seria possível como ciência. Conforme Hartmann, o entendimento “só vê o parcial, não o todo”. (1976, p. 359). A razão é que pensa o todo, a unidade além do mundo empírico, ou seja, conceitos infinitos e incondicionados. Enquanto o entendimento encerra-se em dados empíricos, a razão vai além dos limites da experiência.

Porém, esse conhecimento da razão, por não ter nenhuma correspondência com os dados empíricos, não tem validade científica. O entendimento formula juízos que podem ser verificados e legitimados pela intuição. A razão profere silogismos sobre puros conceitos ou ideias. Contudo, ao mesmo tempo em que o entendimento é inimigo da razão concreta, ele lhe é indispensável. A verdade antes de Hegel era obra do entendimento; a verdade em Hegel é obra da razão concreta. A razão ontológica revela-se como totalidade dinâmica, dialética, progressiva, como unidade que não admite nada fora dela. Hegel tem a necessidade de superar as abstrações e separações do entendimento e, discordando de Kant, ele irá dizer que tudo na realidade está em relação e a relação sujeito-objeto é apenas um caso disso.

As grandes concepções de verdade anteriores a Hegel são dualistas. Por exemplo, conforme Kant, se a realidade numênica é incognoscível e apenas se conhece os fenômenos, então a verdade não é a adequação do pensamento ao real. O sujeito kantiano não é substancial, mas transcendental. Hegel não é dualista como a maioria dos filósofos anteriores a ele. Se nas filosofias anteriores a verdade é obra do entendimento, em Hegel é tarefa da razão. A verdade é o todo. A sua visão é relacional, verdade como totalidade orgânica, como processo, ou seja, a verdade se constitui progressivamente e o absoluto se conhece dinamicamente. A razão supera o entendimento e a intuição sensível, pois são unilaterais, a parciais e a incapacidade de uma visão relacional.

Referência Bibliográfica

BORGES, Maria de Lourdes Alves. História e Metafísica em Hegel. Porto Alegre: Edipucrs, 1998.

CIRNE-LIMA, Carlos. Depois de Hegel. Caxias do Sul: Educs, 2006.

HARTMANN, Nicolai. A filosofia do idealismo alemão. Trad. José Gonçalves Belo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976.

HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio I. São Paulo: Loyola, 1995.

REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. 5. São Paulo: Paulus, 2005.

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.

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Georg Hegel