Direito e moral em Kelsen

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Qual é a relação existente entre Direito, moral e valores? O Direito deve ser isento de valores? Segundo o princípio da pureza metodológica, o Direito não é isento de valores. A Teoria Pura do Direito não nega a conexão entre Direito e valores, mas a sua importância no estudo das normas jurídicas.

Kelsen não aceita a distinção entre direito e moral a partir do critério da interioridade (moral) e da exterioridade (direito). O direito é definido a partir das ideias de normatividade e validade e o seu campo não tem relação com a Ética. As normas jurídicas são estudadas pela Ciência do Direito e as normas morais, pela Ética. A ciência jurídica versa sobre o lícito e o ilícito, sobre o legal (constitucional) e o ilegal (inconstitucional), sobre o válido e o inválido e não sobre o que é certo ou errado, sobre o que é virtuoso ou vicioso, sobre o que é bom ou mau. Isso é estudado pela Ética.

Um direito positivo pode contrariar algum mandamento de justiça, e nem por isso deixa de ser válido. Ele é um direito posto pela autoridade do legislador e dotado de validade se obedecer as condições formais. Há, portanto, no juspositivismo de Kelsen, a defesa da separabilidade entre direito e moral. Validade e justiça de uma norma jurídica são juízos de valor diversos. Kelsen, assim, expurga do interior da teoria jurídica a preocupação com a justiça e com a injustiça.

Há três teses centrais no juspositivismo do séc. XX. A primeira é a tese dos fatos sociais, que diz que a existência do Direito depende de uma construção humana (certas atitudes, convenções, comportamentos…). Portanto, nega-se aqui a existências de normas naturais. A segunda, defende a separabilidade entre Direito e moral. A validade do Direito não depende de seu mérito moral, o que implica que Direito injusto ainda é Direito. Nega-se, assim, a fundamentação do Direito na moral. A terceira e última tese é a da discricionariedade. O material jurídico se esgota devido lacunas normativas, contradições normativas ou indeterminações linguísticas e certos casos ficam sem respostas à luz do Direito. Nesses casos, o responsável pela decisão tem que exercer o seu poder discricionário.

Kelsen propôs uma metodologia própria ao positivismo, a chamada abordagem avalorativa. É seu o princípio metodológico de pureza, pelo qual a teoria do Direito, com caráter científico, deve estar depurada de elementos valorativos e de considerações sociais e políticas. Kelsen não nega a relação que há entre Direito, política e moral, todavia, defende que é necessário excluir esses elementos para construir uma teoria própria que descrevesse objetivamente o Direito. Em sua obra principal, o jusfilósofo investiga a norma jurídica, compreendida como esquema objetivo de interpretação de um ato. A norma é um comando que prescreve um sentido objetivo aos atos humanos. Esse sentido objetivo opõe-se ao sentido subjetivo pelos quais cada indivíduo interpreta as ações.

O Direito, sendo definido como norma, é delimitado em face de sua natureza e a ciência jurídica em face da ciência natural. Além das normas jurídicas, as normas sociais (que são abrangidas pela Moral e estudadas pela Ética) também regulam a conduta entre os homens. “Na medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito.” (TPD, p. 67).

Confundem-se, normalmente, Direito com ciência jurídica e Moral com Ética. Justamente por isso, a pureza do método da ciência jurídica é posta em perigo, pois não se distingue claramente Direito e Moral. Há dois tipos de normas morais: as que estatuem a conduta entre os homens e as que estatuam a conduta de um homem consigo mesmo, tais como o suicídio, a coragem, a castidade etc. Kelsen destaca que “só por causa dos efeitos que esta conduta tem sobre a comunidade é que ela se transforma, na consciência dos membros da comunidade, numa norma moral”. (TPD, p. 68). Os próprios deveres dos homens para consigo são sociais.

Kelsen diz que a distinção de que a Moral prescreve uma conduta interna e o Direito, uma conduta externa, está equivocada. Tanto o suicídio, a coragem e a castidade, normalmente tratados pela Moral, devem ser tratados também pelo Direito.

“A virtude moral da coragem não consiste apenas no estado de alma de ausência de medo, mas também numa conduta exterior condicionada por aquele estado. E, quando uma ordem jurídica proíbe o homicídio, proíbe não apenas a produção da morte de um homem através da conduta exterior de um outro homem, mas também uma conduta interna, ou seja, a intenção de produzir um tal resultado.” (TPD, p. 68).

Kelsen diz que a conduta moral, que muitos moralistas (e aqui claramente ele está citando a filosofia kantiana) dizem ser “interna” e “contra a inclinação” ou “contra o interesse egoístico” é impossível, porque não agir segundo nossas inclinações é psicologicamente impossível e “uma Moral cuja apenas se refira aos motivos da conduta pressupõe uma outra ordem social que prescreva uma conduta externa”. (TPD, p. 70). Além disso, Kelsen destaca que “nem toda e qualquer conduta pode ser moral apenas por ser realizada contra a inclinação ou o interesse egoístico”. (TPD, p. 70).

Quando alguém, obedecendo ao comando de outrem, pratica um homicídio, a sua ação não tem valor moral. Isso independe do “interesse egoístico” ou a “inclinação” do agente. O que importa, neste caso, é se o homicídio for proibido pela ordem social considerada válida. “Uma conduta apenas pode ter valor moral quando não só o seu motivo determinante como também a própria conduta correspondam a uma norma moral.” (TPD, p. 70).

As normas morais, tais como as normas jurídicas, são criadas pelos costumes ou por meio de uma elaboração consciente. Assim, a Moral também é positiva, mas claro que, diferentemente do Direito, ela não prevê órgãos centrais para a sua aplicação. Uma ordem jurídica primitiva também é descentralizada. “Uma distinção entre Direito e Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana.” (TPD, p. 71).

A distinção entre Direito e Moral ocorre pela ordem de coação, que é “uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado”. (TPD, p. 71). O Direito é concebido a partir de uma ordem de coação; a Moral, é uma ordem social e não de coação. Estabelece-se, assim, que o Direito e a Moral constituem diferentes sistemas de normas.

Partindo de um critério científico, rejeita-se valores absolutos em geral e um valor moral absoluto em particular. “[…] não há uma Moral absoluta, isto é, que seja a única válida.” (TPD, p. 72). Devido à grande diversidade daquilo que os homens consideraram justo e injusto, em épocas e lugares diferentes, conclui-se que não é possível determinar elementos comuns aos conteúdos das diferentes ordens morais. Os sistemas morais são normas sociais, que estatuem determinadas condutas.

Afirmar que o Direito é, por sua essência, moral, “não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece […] uma determinada conduta humana. Então, neste sentido relativo, todo o Direito tem caráter moral”. (TPD, p. 74). A relação entre Direito e Moral não é uma relação de conteúdo, mas de forma.

Kelsen frisa que “a exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência”. (TPD, p. 75). Pressupondo a existência de apenas valores morais relativos, a exigência de que o Direito deve ser justo ou moral significa que o Direito positivo deve corresponder a um sistema moral determinado. (TPD, p. 75).

Quando se busca distinguir Direito e Moral ou Justiça por meio de uma teoria relativa dos valores “apenas significa que, quando uma ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas de Moral, e não a relação entre aquela e ‘a’ Moral”. (TPD, 75-76)

Kelsen é claro ao afirmar que “[…] a validade de uma ordem jurídica positiva é independente de sua concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral”. (TPD, 76). O Direito, se ele for identificado com a Justiça, o ser com o dever-ser, o conceito de Justiça, assim como o de bom, perdem o seu sentido. (TPD, 77).

“A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever-ser, constituem valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores (wertfreie). O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito.” (TPD, 77).

Sendo que a ordem moral não prescreve a obediência à ordem jurídica em todas as circunstâncias, existindo, assim, a possibilidade de uma contradição entre a ordem moral e a ordem jurídica, a validade das normas jurídicas não dependem do fato de corresponderem à ordem moral. Para o Direito positivo, uma norma jurídica pode ser válida mesmo contrariando a ordem moral. Não há uma Moral única que possa servir de base ao Direito positivo.

Há vários sistemas de Moral que são diferentes uns dos outros e muitas vezes antagônicos. O Direito positivo pode corresponder às concepções morais de um determinado grupo, contrariando, ao mesmo tempo, as concepções morais de um outro grupo ou camada da população.

Em sua Teoria Pura, Kelsen rejeita a tese de que o Direito é moral, ou seja, de que somente uma ordem social moral é Direito, porque pressupõe uma Moral absoluta e “porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade”. (TPD, 78).

O direito, segundo Kelsen, é concebido como uma ordem de coerção. Os atos de coerção são executados mesmo sem a vontade dos que são atingidos por eles. Há duas espécies de atos de coação: sanções, que são os atos de coerção estatuídos contra uma ação ou omissão determinada pela ordem jurídica (ex.: a pena prevista para o furto) e coação, que não tem este caráter (ex.: internamento compulsório de indivíduos ou aniquilação ou privação compulsória da propriedade no interesse público). (TPD, 121).

Concluindo, o debate acerca da distinção das normas morais e jurídicas é central para a Filosofia do Direito. A relação existente entre Direito e moral está presente no debate jusfilosófico desde os gregos e autores como Kelsen, Hart, Bobbio e outros da escola do juspositivismo se posicionam na tese da separabilidade. Este problema acerca da fundamentação ou não do Direito na moral não é importante apenas porque seus pressupostos figuram em debates da doutrina do Direito, mas também porque seus elementos estão presentes no meio prático jurídico. Os pressupostos das relações entre Direito e moral estão presentes nas decisões judiciais, sobretudo, em face do elemento da cooriginariedade.

Nos litígios jurídicos atuais se articulam argumentos e valores que consubstanciam questões morais como circunstâncias importantes a serem enfrentadas e decididas no âmbito prático do Direito. As discussões sobre as categorias de justiça, igualdade, liberdade, dignidade humana, vida etc., estão permeadas de uma discussão tendo como base a moral e os valores. Nesse tipo de debate está presente tanto a norma jurídica como parte do procedimento judicial de decidir como a aceitação moral como pressuposto de legitimidade do Direito. Habermas diz que a moral está no âmbito do Direito e não à parte dele. Quando tratamos do Direito, estamos dialogando sempre com a moral. Kelsen discorda disso.

Kelsen destaca que assim como a lei natural é um enunciado descritivo da natureza, a lei jurídica é um enunciado descritivo do Direito. Nas ciências jurídicas se aplica o princípio da imputação; nas ciências naturais, se aplica o princípio da causalidade. A validade de uma ordem jurídica positiva independe de sua concordância ou não com um sistema moral. A ciência jurídica não tem relação com a moral.

Referência Bibliográfica

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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