Justiça como equidade em Rawls

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on email

A teoria da justiça proposta por John Rawls investiga a estrutura básica da sociedade, tendo como base a justiça política, a justiça pública e a justiça distributiva. Rawls propõe uma teoria que representa uma alternativa ao utilitarismo, pois para o autor os direitos não deverão estar sujeitos às negociações políticas ou sujeitos ao cálculo de interesses sociais. É através do contrato social que Rawls busca apresentar a relação entre justiça, equidade e liberalismo político.

Ralws, em Uma teoria da justiça, de 1971, apresenta a concepção da justiça como equidade, embasada em um liberalismo igualitário, que visa lidar com o conflito entre os princípios da liberdade (liberty) e da igualdade (equality), que estão em choque desde a Revolução Francesa, e busca aplicá-los na sociedade contemporânea marcada pelo pluralismo razoável (reasonable pluralism) de doutrinas abrangentes (compreensive doctrines).

Rawls propõe uma concepção da justiça a fim de criar um sistema de cooperação social. Há identidade de interesses, pois por meio da cooperação a vida de todos em sociedade fica melhor. Se cada um dependesse apenas de si mesmo, os objetivos de cada sujeito estariam bem mais distantes de serem alcançados do que em um sistema de cooperação social. O conflito de interesses surge porque “ninguém é indiferente no que se refere a como são distribuídos os benefícios maiores produzidos por sua colaboração, pois, para atingir seus fins, cada um prefere uma parcela maior a uma parcela menor desses benefícios”. (TJ, p. 05).

Devido a esse conflito de interesses, em que cada um busca uma parcela maior de benefícios, Rawls destaca a importância e a necessidade de pensar um conjunto de princípios e a partir deles pensar a organização social e a justiça distributiva. “Esses princípios são os princípios da justiça social: são um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e dos encargos da cooperação social.” (TJ, p. 05).

Para tal, Rawls deve formular uma teoria que atribua direitos e deveres para as instituições básicas. A sociedade como um sistema justo de cooperação social é norteada por procedimentos reconhecidos e aceitos publicamente por aqueles que cooperam. A ideia central em um sistema de cooperação é a reciprocidade e a mutualidade.

“É claro que as sociedades existentes raramente são bem-ordenadas […], pois o que é justo e injusto está sempre em discussão. Há discordâncias acerca de quais princípios devem definir as condições fundamentais da associação. Não obstante, […] cada pessoa tem uma concepção de justiça. Isto é, cada qual compreende a necessidade e está disposto a corroborar um conjunto característico de princípios para a atribuição de direitos e deveres fundamentais e para decidir qual ele e os demais consideram ser a distribuição adequada dos benefícios e dos encargos da cooperação social.” (TJ, p. 06).

A sociedade bem ordenada é aquela regulada por uma concepção pública de justiça. Quando “(1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça; e, (2) as instituições sociais fundamentais […] atendem a esses princípios” (TJ, p. 05), então a sociedade é bem ordenada. “Pode-se imaginar a concepção pública da justiça como aquilo que constitui a carta fundamental de uma associação humana bem-ordenada.” (TJ, p. 06).

Diante do pluralismo de concepções de justiça, pode-se afirmar que “as instituições são justas quando não fazem distinções arbitrárias entre pessoas na atribuição os direitos e deveres fundamentais”. (TJ, p. 05). As leis devem funcionar como um equilíbrio entre as posições conflitantes entre si. Dificilmente, as sociedades existentes são bem-ordenadas. O justo e o injusto está sempre sendo debatido, pois há discordância acerca dos princípios basilares da sociedade.

Além do consenso entre as concepções de justiça, é necessário também “que os planos dos indivíduos se encaixem uns nos outros para que suas atividades sejam compatíveis entre si”. (TJ, p. 07). Caso contrário, haverá frustações de expectativas. Assim, a coordenação, a eficiência e a estabilidade são fundamentais para a viabilidade de comunidades humanas.

“É preciso que os planos dos indivíduos se encaixem entre si para que suas atividades sejam compatíveis entre si e possam ser todas realizadas sem que as expectativas legítimas de cada um sofram frustações graves. Ademais, a realização desses planos deve levar à realização dos objetivos sociais de maneira que sejam eficientes e compatíveis com a justiça. E, por fim, o esquema de cooperação social deve ser estável.” (TJ, p. 07).

Os acordos são mantidos apenas quando há concordância acerca do justo e do injusto. “A desconfiança e o ressentimento corroem os vínculos de civilidade.” (TJ, p. 07). Não apenas as leis podem ser consideradas justas ou injustas, mas também as instituições, os sistemas sociais, as decisões judiciais, os julgamentos, as opiniões etc. Rawls concentra-se na justiça social.

A justiça como equidade esboça o seu liberalismo político (ou a sua concepção política de justiça). Ela é uma concepção neutra de justiça. Assim, não há identificação com qualquer doutrina abrangente particular (filosófica, religiosa ou moral) individual. Rawls diz: “apresento, então, a ideia central de justiça como equidade, uma teoria da justiça que generaliza e eleva a um nível mais alto de abstração a concepção tradicional do contrato social”. (TJ, p. 03).

sociedade bem ordenada é regulada por uma concepção de justiça pública e política. É bem ordenada, pois todos que nela participam aceitam a mesma concepção e os mesmos princípios de justiça. A estrutura básica da sociedade indica que as principais instituições políticas e sociais (constituição, judiciário, mercado, direito de propriedade etc.) comungam em um sistema de cooperação social.

Portanto, a justiça como equidade não se aplica aos indivíduos, mas a estrutura básica (instituições) da sociedade. As instituições que não fazem parte da estrutura básica, como, por exemplo, igrejas, sindicatos, empresas, família, escolas etc. não são reguladas pelos princípios de justiça. Tanto para os indivíduos quanto para essas instituições, os efeitos da concepção de justiça como equidade são apenas indiretos. O modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e deveres são o objeto de análise de Rawls. A justiça social, preconizada por Rawls, refere-se à estrutura básica da sociedade.

“Além de universais, atingem as oportunidades iniciais de vida; contudo; não podem ser justificadas recorrendo-se à ideia de mérito. É a essas desigualdades, supostamente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade, que se devem aplicar em primeiro lugar os princípios da justiça social. Esses princípios, então, regem a escolha de uma constituição política e os elementos principais do sistema econômico e social.” (TJ, p. 09).

Sabe-se que pessoas nascidas em situações e condições diferentes têm expectativas diferentes de vida. As desigualdades mais profundas são aquela em que as instituições favorecem certos pontos mais que outros. O contratualismo é o ponto de partida de Rawls. Em suas palavras: “meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que generalize e eleve a um nível mais alto de abstração a conhecida teoria do contrato social conforme encontrada em, digamos, Locke, Rousseau e Kant”. (TJ, p. 13).

Os princípios de justiça constituem o acordo original. “São eles os princípios que pessoas livres e racionais, interessadas em promover seus próprios interesses, aceitariam em uma situação inicial de igualdade como definidores das condições fundamentais de sua associação. Esses princípios devem reger todos os acordos subsequentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem realizar e as formas de governo que se podem instituir. Chamarei de justiça como equidade essa maneira de encarar os princípios da justiça.” (TJ, p. 14).

A escolha que ocorre na cooperação social determina os direitos e deveres e a divisão dos benefícios sociais. Pessoas racionais devem escolher quais são as suas concepções de bem e o que pode ser considerado justo e injusto. Daí é que surgem os princípios de justiça. “Na justiça como equidade, a situação original de igualdade corresponde ao estado de natureza […]. Não é tida como situação histórica real […]. É entendida como situação puramente hipotética”. (TJ, p. 14).

As características dessa situação são as seguintes: “[…] ninguém conhece seu lugar na sociedade, sua classe ou seu status social; e ninguém conhece sua sorte na distribuição dos recursos e das habilidades naturais, sua inteligência, força e coisas do gênero. […] As partes não conhecem suas concepções do bem nem suas propensões psicológicas especiais. Os princípios de justiça são escolhidos por trás de um véu de ignorância. Isso garante que ninguém seja favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Já que todos estão em situação semelhantes e ninguém pode propor princípios que favoreçam sua própria situação, os princípios de justiça são resultantes de um acordo ou pacto justo”. (TJ, p. 15).

Na posição original os consensos são equitativos, pois a situação inicial é equitativa. A escolha dos princípios antecede a própria concepção de justiça que irá regular as instituições. Após escolher uma concepção de justiça, escolhe-se uma constituição, uma legislatura para promulgar leis, tudo em consonância com os princípios acordados inicialmente.

Os princípios de justiça devem reger todos os acordos posteriores. Todos os que entram em cooperação escolhem juntos os princípios que regem os direitos e os deveres fundamentais. Os princípios são estabelecidos por pessoas livres e racionais. “Uma das características da justiça como equidade é conceber as partes na posição inicial como racionais e mutuamente desinteressadas. Isso não significa que as partes sejam egoístas, isto é, indivíduos que têm apenas certos tipos de interesse, por exemplo, riqueza, prestígio e poder. Mas são concebidas como pessoas que não tem interesse nos interesses alheios.” (TJ, p. 16).

A busca pela justiça social deve ser enraizada na estrutura básica da sociedade, que são as principais instituições políticas e sociais e o modo em que elas se encaixam em um sistema de cooperação. Isso é possível pela própria ideia da evolução do contrato, que não ocorre pelos princípios estipulados pela história e pelas convenções, mas por uma posição original e hipotética, que visa uma equidade dos cidadãos na participação da criação das normas.

A posição original, segundo Rawls, é a melhor maneira para a criação dos princípios que serão utilizados para fundação das normas. “Na elaboração da concepção de justiça como equidade, uma das principais tarefas é decidir que princípios da justiça seriam escolhidos na posição original.” (TJ, p. 17). Na cena hipotética (e não histórica), os membros fundadores estão encobertos por um véu de ignorância. Todos concordariam que ninguém seja favorecido ou desfavorecido pelo acaso ou pelas circunstâncias sociais e que ninguém adapte os princípios às suas circunstâncias.

“Se determinado homem soubesse que era rico, poderia achar razoável defender o princípio de que os diversos impostos em favor do bem-estar social fossem considerados injustos; se ele soubesse que era pobre, seria bem provável que propusesse o princípio oposto. Para representar as restrições desejadas, imagina-se uma situação na qual todos carecem desse tipo de informação. Exclui-se o conhecimento dessas contingências que geram discórdia entre os homens e permitem que se deixem levar pelos preconceitos. Desse modo chega-se ao véu de ignorância de maneira natural. Esse conceito não deve causar nenhuma dificuldade se tivermos em mente que seu propósito é expressar restrições a argumentos.” (TJ, p. 22-23).

Weber destaca que “assim como em Kant a autonomia é o fundamento da dignidade da pessoa humana e, portanto, da capacidade de fazer a lei universal, em Rawls ela é o fundamento dos princípios de justiça e da sociedade democrática”. (2013, p. 129). Conforme Oliveira, o “trabalho conceitual em torno da correlação entre moral e política acompanha todo o itinerário de fundamentação de uma teoria de justiça, que nos leva da apropriação rawlsiana de Kant em Teoria da Justiça”. (1999, p. 167).

A posição original é a base para as escolhas dos princípios de justiça como equidade. Ela não desvaloriza os avanços da moralidade, mas valoriza as experiências e os avanços atingidos na história. Rawls explica que os princípios da justiça como equidade não são atemporais e abruptamente introduzidos na vida de uma democracia constitucional. Pelo contrário, eles se originam no conceito ordinário de justiça, isto é, a experiência histórica, a tradição de liberdade e a democracia criam nas pessoas, nos grupos e na sociedade o senso de justiça que se traduz em sentenças sapienciais que são as “nossas convicções ponderadas” (our considered judgments) […] que irão formar os princípios da nova sociedade. (PEGORARO, 2006, p. 130).

Um dos fatores essenciais da posição original é o véu de ignorância. Os sujeitos que estão na posição original desconhecem suas posições futuras. Conforme o autor, “[…] devemos, de algum modo, anular as consequências de contingências específicas que geram discórdia entre os homens, tentando-os explorar as a explorar as circunstâncias sociais e naturais em benefício próprio. Para fazê-lo, presumo que as partes se situam por trás de um véu de ignorância. Elas desconhecem as consequências que as diversas alternativas podem ter sobre a situação de cada qual e são obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em ponderações gerais.” (TJ, p. 166).

O véu de ignorância impede os legisladores (membros fundadores da nova sociedade bem ordenada) criarem princípios que os favoreçam em detrimento de outros que serão desfavorecidos. Por desconhecer as posições futuras que serão ocupadas, é impossível tentar se beneficiar. Somente assim é possível, segundo Rawls, uma justiça como equidade.

A concepção de justiça criada na posição original estará embasada na moralidade. Os princípios escolhidos, a saber, os princípios da liberdade e da igualdade visam à busca pela justiça. E isso é possível a partir das instituições que irão aplicar essa justiça como equidade. “Caberá às instituições e à legislação complementar, detalhar e regulamentar estes dois princípios adaptando-os às situações de espaço, tempo e condições sociais.” (PEGORARO, 2006, p. 129).

“A teoria de justiça pode ser vista, portanto, como um procedimento universalizável de construção capaz de dar conta da sociabilidade humana em sociedades democráticas regidas por uma constituição, onde reivindicações de liberdades básicas e de participação equitativa na vida social permitem a convivência pluralista de diversas doutrinas religiosas, filosóficas e morais”. (OLIVEIRA, 1999, p. 168-9).

Em relação à concepção de bem, Rawls salienta que é necessário inicialmente situar o bem nas várias interpretações pessoais. Cada indivíduo, situado em sua sociedade, tem o seu conceito de justiça. Portanto, o conceito de bem surge a partir da concepção de bem da sociedade em que o indivíduo está inserido. Na justiça como equidade, “o conceito de direito justo antecede o de bem. Em contraste com as teorias teleológicas, algo só é bom se, e somente se, combinar com modos de vida compatíveis com os princípios de justiça que já estão à mão”. (TJ, p. 490).

A concepção de bem não deve ser pensada apenas em curto prazo, mas em longo prazo; não pensar um bem somente para o hoje, mas também para o amanhã. Para a construção de uma sociedade justa é necessário que os interesses individuais estejam relacionados com os interesses coletivos.

As virtudes pessoais (autorrespeito e autoestima) são relevantes para a construção de um ideal de justiça. Isso garante à sociedade uma evolução moral a partir da mudança de gerações. Os princípios formulados na posição original serão a base para a justiça concebida na sociedade. A legislação deve ser sempre atualizada a partir dos preceitos de uma teoria da justiça que concebe o avanço da moralidade.

Referências Bibliográficas

OLIVEIRA, N. F. de. Tractatus ethico-politicus: genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. 3. Ed. Petrópolis: Vozes, 2006.

RAWLSJohn. Uma Teoria da Justiça. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Editora Ática, 2000.

WEBER, T. Ética e Filosofia do Direito: autonomia e dignidade da pessoa humana. Petrópolis: Vozes, 2013.

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on email

O ateísmo na Filosofia

Ateísmo (a-theos = sem Deus) significa a negação de Deus; por isso, “ateu é quem afirma que Deus não existe”. A negação de Deus não

Quer aprender sobre filosofia de modo gratuito? Assine minha newsletter.

Seus dados estão seguros.

“A filosofia é um movimento determinado pelo amor rumo à participação na realidade essencial de todas as possibilidades.”
Max Scheler