Escrever sempre foi uma paixão. Lembro que quando comecei a escrever meus primeiros versos e contos, tinha em torno de 14 anos. E foi neste momento também que me tornei leitor. Gosto de pensar que sou leitor, escritor e professor. Eu me tornei leitor não porque amava ler, mas porque decidi que queria ser intelectual, que queria dedicar a minha vida aos livros. Hoje, vivo lendo, escrevendo e dando aulas. Ganho a vida preparando textos e, para conseguir escrever, uso da leitura para o suporte que necessito. Ou seja, leio para poder escrever e escrevo para poder viver.
Antes de começar qualquer texto, gosto de criar um “clima”. Meu encontro com a escrita é similar ao primeiro encontro de dois apaixonados. É um momento único e sempre dá aquele friozinho na barriga. As palavras que estão sendo escritas agora são palavras que o leitor irá consumir. Escrever tem, muitas vezes, mais poder que armas. A escrita gera revoluções. Sem o “clima” na hora da escrita, as coisas podem se tornar automáticas. E isso eu não quero. A vida é curta demais para vivermos de maneira automática. O “clima” faz com que momentos sejam eternos.
Lembro que comecei a fazer isso quando li uma carta de Maquiavel ao seu amigo Vettori, que foi escrita no dia 10 de dezembro de 1513. Na carta, Maquiavel descreve seus dias melancólicos. Ele prepara armadilhas aos pássaros, manda cortar as árvores de seu bosque, conversando com os lenhadores. Lê Dante, Petrarca, ou as apaixonadas queixas de Tibulo, de Ovídio. A taberna o tem como frequentador; ali, colhe, dos fregueses de passagem, informações sobre as terras de onde vêm; ali avilta-se jogando gamão, entre inúmeras altercações e palavras grosseiras, com o taberneiro, o moleiro, o açougueiro e dois operários do foro de cal. Mas, chegando a noite, muda o cenário, pois Maquiavel retira-se ao gabinete de trabalho, entre os seus livros, tesouros de obras antigas. Diz Maquiavel: deponho à entrada as roupas enlameadas de todo dia, visto-me como para apresentar-me nas Cortes e perante os reis… Vestido como convém, penetro nas Cortes antigas dos homens de outrora, que me recebem com amizade; a seu lado, encontro o único alimento que me é próprio e para o qual nasci. Sem falso pudor, ouso conversar com eles e perguntar-lhes as causas de suas ações; e, tão grande é a sua humanidade, que me respondem. Durante quatro longas horas, não sinto mais aborrecimento algum, esqueço todas as misérias, não mais receio a pobreza, não mais me atemoriza a morte, transporto-me inteiramente a eles.
Lendo esta carta, percebi a riqueza que eu tinha simplesmente acessando livros. Eu era rico, pois poderia acessar, nos livros, o que considero fundamental para a nossa vida: o conhecimento. Por meio deles, eu também poderia me encontrar com as grandes mentes da humanidade. Hoje, temos acesso a isso, mas poucos acabam utilizando desta vantagem. Quem, hoje em dia, se dedica a leitura de uma Ética a Nicômaco ou de uma Crítica da Razão Pura? Apenas os poucos estudantes de filosofia e apaixonados por ela. Mas são poucos. Muitos acabam lendo livros que pouco agregam. Muitos acabam passando pela vida sem nem sequer se dar conta da riqueza que eles poderiam acessar lendo livros sobre o que os atormenta.
Claro que não estou aqui separando o grupo de leitores do grupo de não leitores. Estou apenas tentando “gritar”, por meio destas palavras que estou escrevendo, que a riqueza que possuímos nos livros é inesgotável. Ordine, na obra A utilidade do inútil, diz: “Será preciso lutar muito nos próximos anos para salvar dessa deriva utilitarista não somente a ciência, a escola e a universidade, mas também tudo o que chamamos ‘cultura’. Será preciso resistir à dissolução programada do ensino, da pesquisa científica, dos clássicos e dos bens culturais, porque sabotar a cultura e a educação significa sabotar o futuro da humanidade. Há poucos anos tive a ocasião de ler uma frase simples, mas muito significativa, inscrita numa indicação de uma biblioteca de manuscritos num oásis perdido do Saara: ‘O conhecimento é uma riqueza que se pode transmitir sem se empobrecer.’ Somente o saber, ao desafiar os paradigmas dominantes do lucro, pode ser compartilhado sem empobrecer quem o transmite e quem o recebe. Na verdade, os enriquece”.
Se pensarmos na filosofia, que é a área que atuo, ela é um conhecimento que todo o ser humano deve buscar para refletir sobre si mesmo e sobre o mundo. Pense comigo: as mentes mais brilhantes da humanidade desenvolveram reflexões sobre temas importantes para a nossa vida como felicidade, amor, trabalho, conhecimento, prazer, ética, desenvolvimento pessoal, entre outros. Não seria um desperdício passar pela vida sem contar com a sabedoria destes grandes pensadores?
Finalizo este texto citando Habermas, em uma entrevista que ele deu ao El país, de 2018. Diz ele: “Desde a invenção do livro impresso, que transformou todas as pessoas em leitores potenciais, foi preciso passar séculos até que toda a população aprendesse a ler. A Internet, que nos transforma todos em autores potenciais, não tem mais do que duas décadas. A Internet abriu milhões de nichos subculturais úteis nos quais se troca informação confiável e opiniões fundamentadas. O que me irrita é o fato de que se trata da primeira revolução da mídia na história que serve antes de tudo a fins econômicos, e não culturais. […] Não pode haver intelectuais comprometidos se já não há mais leitores a quem continuar alcançando com argumentos”.