Os casos difíceis em Dworkin

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Ao tratar dos casos difíceis, um debate sempre é realizado: a relação entre direito e moral. A moral pode ser vista como um fato histórico, porque é compreendida como um modelo histórico-comportamental “[…] cuja característica é a de estar-se fazendo ou se autoproduzindo constantemente tanto no plano de sua existência material, prática, como no de sua vida espiritual”. (VÁZQUEZ, 2008, p. 37). Perelman (2005, p. 31) diz: “qualquer evolução moral, social ou política, que traz uma modificação da escala de valores, modifica ao mesmo tempo as características consideradas essenciais para aplicação da justiça”.

Defende-se a atenção do Direito às transitoriedades morais, porque é necessário que o Direito se compreenda no seu sentido autêntico, não mero imperativo do poder, não simples meio técnico de quaisquer estratégias, mas validade em que a axiologia e a responsabilidade do homem se manifestem. (CASTANHEIRA NEVES, 1998, p. 43). Dois grandes teóricos do juspositivismo são Kelsen e Hart. O objeto de sua Teoria Pura do Direito é a norma jurídica, compreendida como esquema objetivo de interpretação de um ato. A norma é um comando que prescreve um sentido objetivo aos atos humanos. E Hart desenvolve um conceito de direito como um sistema de regras cujo caráter jurídico deriva de outras regras. Segundo o autor de Levando os direitos a sério:

“Nos casos fáceis (por exemplo, quando um homem é acusado de violar uma lei que proíbe dirigir a mais de noventa quilômetros por hora), parece correto dizer que o juiz está aplicando uma regra preexistente a um novo caso. Mas podemos dizer isso quando a Suprema Corte derruba um precedente e ordena que as escolas sejam dessegredadas ou declara ilegais procedimentos que, com a tolerância dos tribunais, a polícia vinha adotando há décadas? Nesses casos dramáticos a Suprema Corte apresenta razões – ela não cita leis escritas, mas apela para princípios de justiça e política pública.” (DWORKIN, 2010, p. 08).

Ao tratar da questão da justificação, Dworkin destaca que ela tem ramificações importantes. Ela afeta a extensão da obrigação moral e política do indivíduo de obedecer à lei criada pelo juiz e não somente a extensão da autoridade judicial. As diversas correntes da abordagem profissional da teoria do direito fracassaram, pois elas ignoraram o fato de que os problemas de teoria do direito são problemas relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos. Os juízes, com origens econômicas e políticas específicas, ou oriundos de tipos específicos de práticas jurídicas, ou adeptos de sistemas de valores específicos, ou com afiliações políticas específicas tendem a decidir em favor de réus com as mesmas origens sociais e institucionais? Essas questões são importantes para saber se o juiz está seguindo ou não a regra, mas não é tão importante para a matéria de princípios. 

Os juristas não precisam de provas para mostrar que os juízes divergem e que suas decisões refletem sua formação e seu temperamento. Mas, eles estão confusos quanto a se isso significa que os juízes divergem no tocante à natureza e ao núcleo dos princípios jurídicos fundamentais ou se isso demonstra que não existem tais princípios. A corrente pós-realista reformulou a questão da seguinte forma: como deveriam os juízes chegar às suas decisões a fim de atender da melhor maneira possível os objetivos do processo judicial?

Porém, diz Dworkin, as diversas correntes profissionais da teoria do direito fracassaram, pois todas elas ignoram o fato crucial de que os problemas da teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos. A teoria do direito deve trazer à luz esses problemas e enfrentá-los como problemas de teoria moral. Dworkin cita o livro A causação no direito, de Hart e Honore e comenta que a regra jurídica é compreendida como uma extensão de teorias populares sobre moralidade e causação.

Eles distinguem o caso de um motorista descuidado que fere levemente um homem que morre porque é hemofílico do caso de um motorista descuidado que fere um homem que morre de septicemia (complicação potencialmente fatal de uma infecção) decorrente de negligência médica. Em sua maioria, as pessoas diriam que no primeiro caso o motorista descuidado causou a morte e que ela decorreu de sua negligência, mas não diriam isso no segundo caso. E isso reflete a concepção popular de causação. Hart diz que esse tipo de análise é preliminar para a avaliação crítica no direito e na moralidade popular. Mas é necessário ir além.

O positivismo possui alguns preceitos gerais que, mesmo não estando presente em todo teórico positivista, definem o posicionamento que Dworkin critica. Dworkin, criticando Hart, admite que o direito contém além das regras, os princípios, que eles são estruturalmente distintos e não são validados por uma regra de reconhecimento, afastando assim a discricionariedade judicial.

O positivismo jurídico tem uma teoria sobre os casos difíceis: quando nenhuma regra regula, vale o poder discricionário. Dworkin refutou essa tese e apresentou outra melhor, segundo a qual mesmo nesses casos uma das partes tem o direito de ganhar a causa e o juiz tem o dever de solucionar a questão apelando para direitos pré-existentes. Mas a teoria não supõe que essa solução seja mecânica e incontroversa, ao contrário, supõe que sempre suscitará discussão e divergência. Não se pode objetar que isso prova que ela está errada a não ser que se assuma que toda verdade pode ter sua veracidade demonstrada, o que é muito questionável em geral, mas ainda mais para o Direito.

Referências Bibliográficas

CASTANHEIRA NEVES, António. “Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito”. In: Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra. Vol. LXXIV [separata], 1998, p.1-44.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução de João Dell’ Anna. 30. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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“Compreender o que é, esta é a tarefa da filosofia, pois o que não é, é a razão.”
Georg Hegel