Boa vontade e caridade em Santo Agostinho

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A pessoa que possui a boa vontade se rodeia de amor. Nas palavras de Agostinho, “quem ama a sua boa vontade resiste de todos os modos e opõe-se às iniâncias, dando-se-lhe justamente por essa razão o nome de temperante” (1990, p. 61) e, também, a ninguém causará dano. Deste modo, a justiça também não faltará a esta pessoa. Por conseguinte, “a vida venturosa é a que não é infortunada”. (1990, p. 62). Se amamos a boa vontade habitarão em nosso espírito quatro virtudes – prudência, fortaleza, temperança, justiça –, cuja posse é o mesmo que viver reta e dignamente.

A alegria que nasce na consecução do bem, quando ela sem agitação, serena e inalteravelmente eleva o espírito, chama-se vida venturosa. (1990, p. 64). Para Agostinho, os que são venturosos e que têm de ser igualmente bons, não são venturosos por terem querido viver venturosamente, porque isso querem-no também os maus, mas por terem querido viver com retidão – sendo justos –, o que os maus não querem. Os homens maus não querem, desta maneira, ser justos.

A sapiência consiste no conhecimento das supremas leis da moralidade, unido ao perfeito exercício do conjunto das virtudes. Já a insciência, que é o oposto da sapiência, caracteriza-se pela ignorância e falta de princípios morais. Deve ser grande e justo o castigo contra aquele que, já colocado nas alturas da sapiência, resolve escravizar-se à iniância. Desta forma, boa vontade é “a vontade com que pretendemos viver reta e dignamente, e chegar a mais alta sapiência”. (1990, p 56).. Ainda, “ninguém é venturoso sem a sapiência”. (1990, p. 117). Por isso, “devemos aplicar-nos ao estudo da sapiência, e conceder que isto é uma verdade”. (1990, p. 121).

Aquele que põe o seu amor em viver com retidão acaba amando algo eterno e imutável, não amando o que é mutável e temporâneo, uma vez que a retidão nos conduz à escolha certa, e por certo tomamos o que é, por si só, bom. Nesta perspectiva, o eterno e o imutável são preferíveis ao temporâneo e ao mutável – estes são imperfeitos, aqueles são perfeitos. Já os que amam a má vontade acabam amando as riquezas, as honras, os prazeres, a beleza do corpo e a todos os restantes bens inferiores.

Os que são venturosos, pelo amor dos bens eternos, atuam sob a lei eterna – amando os bens superiores; em contraposição, sobre os infortunados age a lei temporânea. “Ordena, portanto, a lei eterna que o amor seja desviado das coisas temporâneas, e que o mesmo, purificado, seja dirigido para as coisas eternas.” (1990, p. 68). Contudo, sabemos que existem dois tipos de homens: os que seguem os bens eternos e os que seguem (somente) os bens passageiros. Porém, depende da vontade o que cada um escolhe para assumir. A reta vontade escolherá, guiada pela razão, os bens mais elevados, por outro lado, a vontade pervertida escolherá, guiada pelo desejo irracional, os bens inferiores. “Todos os pecados estão incluídos em afastar alguém das realidades divinas e verdadeiramente estáveis, voltando-se para as mutáveis e incertas.” (1990, p. 72).

Através da mente e da razão, cada um deve buscar uma vida venturosa: o íntegro é melhor que o deformado; o eterno, que o venturoso. “O que se designa como separação da verdade e da sapiência não é mais do que a vontade pervertida, com que se ama os bens inferiores. ” (1990, p. 135). Por conseguinte:

“Quantos aos que, em vez de ti, amam as obras que tu realizas, assemelham-se aos homens que ao ouvir em algum sapiente de notável eloquência, escutando com excessiva avidez a suavidade da sua voz e a disposição das sílabas, devidamente colocadas, perdem de vista a primazia dos pensamentos, de que essas palavras tinham vibrado como sinais.” (1990, p. 144).

A natureza do corpo é inferior à do espírito. A vontade livre, sem a qual ninguém pode viver com retidão, é um bem, e divinamente concedido, e que se devem condenar os que usam mal deste bem. As virtudes, com as quais se vive honestamente, são grandes bens; as perfeições de quaisquer corpos, sem as quais se pode viver honestamente, são bens ínfimos; por sua vez, as potencialidades do espírito, sem as quais não se pode viver honestamente, são bens médios.

Nenhum corpo é capaz de vencer um espírito dotado de virtude. Contudo, se há alguma coisa mais nobre do que a mente racional e sapiente, para Agostinho, isso só pode ser Deus. (1990, p. 52). Nessa perspectiva, o desejo/anseio de conhecer só é inferior ao desejo/anseio de conhecer O próprio Deus, que é, para Agostinho, a Suma Verdade. E, portanto, o conhecimento mais elevado que podemos almejar, entrementes, ao mesmo tempo, que nunca poderemos alcançar.

O caminho, mais seguro, que nos leva a Deus é a caridade. Assim, ela consiste, como que, num peso interior que atrai a alma para Deus. Para Agostinho, “a lei de Cristo é a caridade”. (1994, p. 30). A Escritura Divina busca estimular os sentimentos dos simples, como que passo a passo, à procura das coisas superiores, no abandono das inferiores.

Na obra De Trinitate (Sobre a Trindade), Agostinho lembra que Deus, para se oferecer como modelo de retorno ao homem decaído, esvaziou-se de si mesmo, não alterando a sua divindade, mas assumindo a nossa humanidade. E isto, Deus, que não precisava fazê-lo, fê-lo por amor ao ser humano. “Quando se afirma que o homem é justo, afirma-se a respeito da alma e não do corpo. A justiça da alma é certa formosura que faz as pessoas parecerem belas, ainda que os corpos sejam por vezes disformes e aleijados.” (1994, p. 273).

O verdadeiro amor é aderir à verdade, para viver na justiça. Contudo, deve-se desprezar as coisas mortais por amor aos outros, amor que nos faça desejar que eles vivam na justiça. Desse modo, “poderemos estar dispostos a morrer quando necessário pelos irmãos, como o Senhor Jesus Cristo nos ensinou com seu exemplo”. (1994,  p. 277). Segue-se, desta maneira, que aquele que quer conhecer, em última análise, Deus, deve ter presente que, em primeiro lugar, deve amar os seus semelhantes, para assim, amar o seu Criador.

Vendo a Trindade, vê-se a caridade, id est, onde há realmente caridade (amor) está presente a Trindade. A máxima “Deus é amor” está na base de toda especulação de Agostinho sobre a Trindade, uma vez que resume aquilo que é a essência de Deus. Dizendo de outra forma: é a prática do amor que abre o verdadeiro acesso ao mistério da Trindade. E revela-se, destarte, a admirável e feliz combinação lograda por Agostinho entre a especulação mais ousada e a piedade mais profunda.

Ele nunca perdia de vista o aspecto do mistério vivido na história, nas experiências humanas e na especulação. “O que é o amor ou a caridade, tão louvada e exaltada pela Escritura, senão o amor do Bem?” (1994, p. 284), assim sendo, será considerada a intenção “[…] reta somente quando procede da fé. Pois é a fé declarada que, de certo modo, inicia o conhecimento”. (1994, p. 286).

O amor dirigido ao Criador não é concupiscência, mas caridade. Haverá concupiscência ao se amar a criatura pela criatura, excluindo o Criador. Na visão agostiniana, “ser intemperante é um vício condenável pela moral”. (1994, p. 303). Prossegue dizendo que:

“Quando conhecemos a Deus, embora nos tornemos melhores do que éramos antes de o conhecer, principalmente se esse conhecimento nos é agradável e provoca o amor que lhe é devido, é um verbo e torna-se uma semelhança de Deus. Entretanto, é uma semelhança inferior a Deus, pois a alma é criatura e Deus, Criador.” (1994, p. 304).

Agostinho ensina que o homem deve purificar a mente pela fé, abster-se cada dia mais de pecar e orar com as lamentações dos santos desejos. “A Deus devemos render, em todo tempo, nossos louvores e bendizê-lo, sem que haja palavra alguma capaz de dá-lo a conhecer. Tenho muita consciência não só da minha boa vontade, mas também de minha fraqueza.” (1994, p. 191). Diz ainda que Deus se irrita contra os maus e é amável para com os bons. “A luz incomoda os olhos doentios, mas é agradável aos sãos.” (1994, p. 213). Assim, é proeminente para o homem aderir a Deus, já que ele reprova todo aquele que dele se afasta.

Fica notório, nas suas obras, a importância de amar a Deus com todo o nosso coração, com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e amar ao próximo como a nós mesmos. Porém, o homem segue pecando e afastando-se de Deus, exatamente, por causa da sua condição humana que tende, muitas vezes, por ser imperfeita, à bens inferiores, uma vez que a natureza humana foi marcada pelo pecado original. Diz ainda que:

“É pela piedade humilde que se vai até Vós, purificando os nossos maus hábitos. Por causa dela, mostrai-Vos indulgente para com os pecados daqueles que os confessam e ouvi os gemidos dos cativos carregados de ferros. Desse modo, soltai-nos dos grilhões por nós mesmos preparados, contando que jamais ergamos contra Vós os chifres duma falsa liberdade, cobiçosos de possuir mais haveres, com risco de tudo perdermos prejudicialmente, se amarmos mais o nosso egoísmo do que a Vós, soberano Bem.” (1973, p. 66).

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO. A Trindade. Tradução do original latino e introdução de Agustinho Belmonte. Revisão e notas complementares de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994.

______. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e de Ambrósio de Pina, S.J. São Paulo: Abril, 1973.

______. O Livre Arbítrio. 2a edição. Tradução do original latino com introdução e notas por Antônio Soares Pinheiro. Braga: Editorial Franciscana Montariol, 1990.

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