A justiça segundo liberais e comunitaristas

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Qual é o critério a ser adotado que deve perpassar por uma teoria da justiça? Como justificar e fundamentar as normas (morais e jurídicas)? A justificação de uma norma vista por meio da controvérsia entre o liberalismo e o comunitarismo oferece instrumentos para pensar uma teoria da justiça, uma concepção de justiça.

Enquanto os liberais priorizam o justo sobre o bem, os comunitaristas defendem a prioridade do bem sobre o justo. Segundo o comunitarismo, a teoria que defende princípios abstratos de moralidade é insuficiente. A ideia de uma justiça procedimental é insuficiente. Devem-se apontar princípios conteudísticos que surgem a partir do ethos de um povo, da tradição e dos costumes da comunidade.

Enquanto os liberais defendem uma teoria de justiça que tem como base uma concepção abstrata de pessoa, a universalidade dos princípios de justiça, uma concepção individualista e atomizada de pessoa, o subjetivismo ético e uma teoria procedimental e deontológica, os comunitaristas, tais como Sandel, Walzer e Taylor defendem que essas características são insuficientes para a formulação de uma teoria da justiça.

 A distinção entre o moral, o jurídico e o ético é decisiva para a justificação das normas. O debate contemporâneo sobre a justiça não se fundamenta na lei divina ou em direitos naturais metafísicos. Então, a justiça depende do contexto ou pode ser tomada universalmente? O justo depende da época e da cultura? O individualismo e o coletivismo mais uma vez estão em choque. A grande questão continua sendo se os seres humanos são independentes uns em relação aos outros com características únicas ou se são seres sociais moldados pelo grupo em que estão inseridos.

Rawls (2000), ao apresentar sua concepção acerca da “posição original”, tendo como base o contratualismo, foi prontamente criticado pelos comunitaristas como atomista, pois os princípios que surgem a partir do “véu de ignorância” são individualistas e abstratos. Há duas grandes divergências apontadas pelo comunitarista Sandel (2005) em relação à teoria liberal de Rawls: 1) a concepção atomista de pessoa moral (a crítica do “eu desvinculado”); 2) a prioridade da justiça (ou dos direitos) diante do bem comum.

A ideia de pessoa moral e de procedimento neutro de justificação centrais na teoria de Rawls empobrece a vida social. Por isso, não é possível compreender a formação da identidade pessoal e o modo como as pessoas agem moralmente. Ao adotar a concepção atomista de pessoa, Rawls acaba dando prioridade ao justo sobre o bem. Uma teoria da justiça não deve priorizar direitos abstratos (como fez Kant e os liberais), mas valorizar concepções substanciais do bem comum. Isso já foi apontado por Hegel ao criticar a teoria de justiça formal kantiana. O conteúdo dos direitos fundamentais somente é compreendido se for contextualizado a partir de sua contribuição para os membros de uma comunidade.

As teorias contratualistas têm um conceito de pessoa equivocado e inapropriado. É impossível pensar um sujeito conforme o descrito por Rawls na posição original. Todo self é imbuído de valores objetivos de vida. A prioridade da justiça e dos direitos fundamentais (neutralidade de justificação ética) sobre a concepção de bem e de vida boa decorre da falsa tese atomista, de que há um self isolado.

Sandel não aceita a tese do justo sobre o bem. Ela só faz sentido se as pessoas são consideradas indivíduos que escolhem monologicamente seus planos de vida e objetivos. Só assim os indivíduos precisam da proteção de sua autonomia pessoal diante das influências da comunidade. Os direitos fundamentais, escolhidos imparcialmente, não se preocupariam com a concepção de bem de determinada comunidade.

Porém, a concepção atomista de pessoa moral, defendida por Rawls e pelos contratualistas, está equivocada. Essa é a tese defendida tanto por Sandel ao criticar Rawls quanto por Hegel ao criticar Kant. Uma ética baseada em direitos diz que “somos selves separados essencialmente, independentes, que precisamos de uma estrutura neutra, uma estrutura de direitos que nega escolher entre objetivos e fins concorrentes. Se o self é anterior aos seus fins, então o direito deve ser anterior ao bem”. (SANDEL, 2005, p. 05).

O indivíduo somente pode ser pensado em uma eticidade concreta e não de forma atomista, isolado e autossuficiente. A identidade individual é possível se há uma comunidade, onde os planos de vida são formados. A justiça deve priorizar o conceito de pessoa concreta e não de pessoa abstrata. “O êxito da identidade pessoal depende da inserção em redes cada vez mais densas de dependências sociais.” (FRATESCHI, Y.; MELO, R.; RAMOS, F. C., 2012, p. 275).

Para o comunitarismo, defender uma concepção de justiça sem pressupor uma concepção do bem não é possível. A moralidade sem a eticidade é abstrata e indeterminada. Pensar um indivíduo na posição original sob um véu de ignorância é abstrato. É a partir dos valores comunitários que se pode definir o justo e o injusto e não a partir do imperativo categórico, nos moldes de Kant.

Um problema enfrentado pelo comunitarismo é cair em um relativismo (a justiça é mero produto de convenções). Segundo Sandel, os argumentos acerca da justiça e dos direitos acarretam inevitavelmente um juízo de valor. Tanto os liberais quanto os comunitaristas não aceitam essa ideia. Os liberais, porque eles defendem que o justo e os direitos devem ser conhecidos independentemente de doutrinas morais abrangentes; os comunitaristas, porque o justo e os direitos surgem a partir dos valores sociais dominantes.

Ambos procuram evitar emitir um juízo de valor sobre as finalidades promovidas pelos direitos. A terceira possibilidade entre liberais e comunitaristas diz que a justificação dos direitos depende da importância moral das finalidades que estes servem. A democracia deliberativa é apresentada como alternativa para as teorias liberais e comunitaristas, nos termos de Rainer Forst (2010).

Segundo Forst, Sandel não entendeu a distinção entre pessoa moral e pessoa ética em Rawls. Forst recupera a crítica de Sandel a Rawls (do “eu desvinculado, atomizado”) e retoma a discussão entre o ético e o moral.  Quando se fala de normas morais, se está tratando do homem como homem, da maior universalidade possível, independente de seus valores e de suas convicções do bem. Quando se fala do ético, se está tratando de concepções do bem, de valores pessoais.

As diferentes concepções de pessoas (pessoa ética, pessoa jurídica, pessoa política e pessoa moral) apresentam diferentes concepções de comunidade (comunidade ética, jurídica, política e moral). Para cada comunidade há um contexto. Assim, falar de uma teoria da justiça é falar dos diferentes contextos da pessoa. Uma teoria da justiça deve contemplar esses diferentes contextos (ético, jurídico, político e moral).

As duas grandes teorias contemporâneas, inspiradas nas filosofias de Kant e de Hegel, são os liberais e os comunitaristas. Segundo os comunitaristas, a posição liberal que prioriza o justo sobre o bem está equivocada. Uma teoria da justiça deve antes valorizar o bem e proteger a vulnerabilidade das pessoas concretas, inseridas em suas comunidades particulares.

Por isso, priorizar o justo sobre o bem, ou seja, priorizar princípios abstratos escolhidos imparcialmente (por pessoas atrás de um véu de ignorância), de forma descontextualizada, não tem sentido. As condições concretas de socialização e autorrealização são fundamentais para a escolha de princípios de justiça. A comunidade e a justiça maximalista e não minimalista (defendida pelo libertarianismo) são centrais para a formação do indivíduo na coletividade a partir de relações intersubjetivas de reconhecimento permeado em valores sociais compartilhados.

O atomismo liberal contemporâneo é herdeiro do contratualismo clássico. Segundo Forst, o caminho do liberalismo foi introduzido por Hobbes. Toda a justificação de Hobbes do contrato social está embasada na natureza humana. O homem é caracterizado pelo egoísmo, pela competição, pela desconfiança. Por natureza, os homens não são sociáveis, como afirmava Aristóteles.

As críticas dos comunitaristas aos liberais retomam as críticas de Hegel ao contratualismo, ao liberalismo clássico e a Kant. Enquanto Kant e Locke partiam de uma concepção universal em relação às necessidades humanas, Hegel chama isso de abstrato (Moralität) e individualista, pois os seres humanos se inserem em um determinado contexto e uma teoria da justiça deve valorizar isso.

A postura liberal defende que a política não está vinculada com a ética. Portanto, o Estado, que surgiu a partir do contrato social, é um instrumento que tem como objetivo assegurar a ordem e a coexistência pacífica entre os indivíduos. Já a postura comunitarista, movimento político filosófico surgido nos anos de 1980, insere o indivíduo em uma comunidade política. Assim, o indivíduo tem “obrigações éticas para com a finalidade social, deve viver para a sua comunidade, organizada em torno de uma ideia substantiva de bem comum”. (SANTOS, 2009, p. 142).

Referências Bibliográficas

FORST, Rainer. Contextos da justiça. Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. de Denilson Luís Werle. São Paulo: Boitempo, 2010.

FRATESCHI, Y.; MELO, R.; RAMOS, F. C. Manual de Filosofia Política. São Paulo: Saraiva, 2012.

RAWLSJohn. Uma Teoria da Justiça. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Editora Ática, 2000.

SANDEL, M. J. O liberalismo e os limites da justiça. Trad. de Carlos E. Pacheco do Amaral. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005.

SANTOS, A. L. C. Elementos de Filosofia Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

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